¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, novembro 18, 2011
 
DE RETOUR


Estava em Paris e era novembro. Conversava com um bom amigo no Rélais Odéon, o primeiro bebedouro ao qual acorro mal chego a Paris. Ele voltava do Japão, eu do Leste europeu. Estávamos na terrasse e um cálido sol outonal nos envolvia. De repente, tive uma súbita percepção de mau agouro:

- Triste saber que um dia esta vidinha vai acabar!

- C’est vrai! – me respondeu. - Mais c’est comme ça!

É o que sinto ante a morte. Medo nenhum, mas sei que será triste. Estou voltando de mais uma viagem, desta vez comecei por Berlim, fui até Copenhague, voltei a Praga e desviei para Karlovy Vary, que ainda não conhecia. Divina. É uma cidade pequena – 60 mil habitantes – mas com uma arquitetura imponente. Estava cercada por um outono histérico, que a tornava ainda mais charmosa. A cidadezinha, cercada de vermelho. Está cheia de termas. Mas atenção: se você não está em busca de águas, três dias são mais que suficientes. Certo, o mundo está cheio de pequenas cidades lindas: Toledo, Cuenca, Ronda, Granada, Siena, Orvieto, Ravello, Amalfi, Positano, Taormina, e até aqui não saí da Espanha e Itália. Fora as que não conheço. Mas Karlovy Vary me impactou. Jamais vi cidade pequena tão solene.

Se você quiser ter uma idéia da cidade, procure os filmes As Férias da Minha Vida, com a atriz Queen Latifah, e Cassino Royale, estrelado por Daniel Craig, com os interiores do majestoso Grandhotel Pupp. Em Karlovy Vary, deguste o Becherovka, um licor tcheco inventado por Ian Becher (daí o nome), cuja excelência seria devida às águas da cidade. Segundo a lenda, apenas duas pessoas sabem quais são os trinta ingredientes da fórmula e sua exata proporção. Recomendo vivamente.

Quem me lê sabe que viajo para visitar bares. Viajante inteligente é o que vê museus por fora e bares por dentro. Desta vez, no entanto, passei uns cinco dias em um museu. Explico. O canal de Nyhavn, em Copenhague, está repleto de bares e restaurantes. Mas não deixa de ser um museu. No caso, de veleiros antigos, que ali estão atracados para fazer paisagem. Há outros museus que adoro na Europa. São os museos del jamón, da Espanha. Em verdade, é uma rede de bares cujas paredes e tetos estão cobertas por presuntos. Certa vez, li uma notícia sobre alguém que morreu soterrado por presuntos. Só podia ser na Espanha. Era. Estes museus peculiares, costumo visitá-los várias vezes na semana.

Praga, turistas demais. A ponte Carlos é uma procissão contínua. A cidade é linda, sem dúvida alguma, mas a impressão que se tem é que nela não existem tchecos. Há quem a julgue mais linda que Paris. Talvez. Mas é muito monumental. Prefiro Paris. Tem mais botecos entre os monumentos. Sin decir que estoy con las bisagras emohecidas, e padeci nas colinas e escadarias de Praga. Sem ter muitas simpatia por Kafka, estive na casa em que viveu. Isto é, no bar que hoje substitui a casa. Fica em frente ao relógio astronômico, que é um grande atrativo turístico da cidade.

Construído no século XV e instalado na principal praça da cidade medieval, apresenta as horas nos diversos sistemas de medição então utilizados, como o romano e o germânico e o da Boêmia. Tem ainda outras funções: mostra o horário da aurora e do poente para cada dia do ano, o signo do zodíaco e o ciclo lunar, além de muitas outras informações, incluindo um calendário.

O espetáculo apresentado a cada hora, que reúne multidões de turistas, cá entre nós, é um tanto pobre. Doze bonecos representando os apóstolos desfilam, a figura da morte puxa um sino, e um palhaço move a cabeça. Médio, mesmo para a Idade Média. Mas Kafka vivia sem dúvida em um apartamento privilegiado.

De Praga fui para Budapeste, que também já conhecia. E onde me viciei no Café New York, certamente o mais solene que conheço na Europa. Descobri que o café pertence hoje a um hotel, o Boscolo, e nele fiz reserva, para não ter de caminhar muito até o bebedouro. Achei barato, 124 euros para duas pessoas. O que não sabia era que o Boscolo era um hotel cinco estrelas.

É a segunda vez que me hospedo em um cinco estrelas sem saber. As outras, foram no Metropole, em Bruxelas. Também busquei o hotel em função do bar do mesmo nome, no qual adoro sentar-me, ao lado de uma Leffe e de meus jornais. Era também barato. Para se ter uma idéia: agora em Paris, parei em um quatro estrelas na Rue des Écoles. Por um quarto exíguo e bastante precário, paguei 280 euros. Mais que o dobro do Boscolo. Ou seja: em certos países, não hesite ante um cinco estrelas. Pode ser bem mais barato que um menos estrelado em Paris ou Roma.

Volto ao Café New York. Soleníssimo, tem baldaquinos que lembram os de Bernini. Passei cinco dias no bar. Café da manhã e um vinho para rematar à noite. Me senti um pouco nalgum boteco privado do vice-deus no Vaticano. Visitei também o Gundel, considerado um dos melhores restaurantes do Leste europeu. E degustei, ao som de violinos magiares entoando czardas, um Svatovavřinecke Jakostini 2006. Ousei ainda pelos Kékfrankos Sopron, pelos Kadarka Szekszard e pelos Szekszárdi Tužilac.

Até parece que sou sommelier especializado em vinhos tchecos. Nada disso. Eu pedia pelo nome. Quanto mais impronunciável, melhor. Não tive decepções. As palavras me fascinam. Já namorei inclusive uma peoniana. O que nela me atraiu, pelo menos de início, é que seu nome estava cheio de kas e ves.

Não imagine o leitor que sou milionário. Nesses restaurantes solenes, paguei menos do que pagaria em São Paulo por um restaurante apenas decente. Em Paris, tenho de admitir, a hotelaria está cara. Mas os restaurantes continuam a preços humanos. Revisitei o Procope, onde não encontrei aquele camembert divino que um dia comi lá. Mas o reencontrei no Aux Charpentiers. Um interlocutor chegou a aventar: é a crise na França. Nada disso. No dia em que na França faltar camembert, a Europa já terá naufragado.

Hoje, São Paulo. Você viajou, gozou seus dias, passou bem? Então agora pague o preço. Na chegada em Guarulhos, uma fila de cerca de mil pessoas, daquelas filas de ida-e-volta, atendida inicialmente por um único funcionário da aduana. Depois chegaram mais barnabés e a fila começou a andar mais rápido. Mesmo assim, foram 45 minutos de espera. O mesmo tempo que levei para chegar de Guarulhos até em casa.

Eu, brasileiro, gastei 15 minutos ou pouco mais de burocracia nos países em que andei. Para entrar em meu país, preciso de quase uma hora. É nestes momentos que temos uma outra percepção da existência:

- Não seria triste saber que esta vidinha um dia vai acabar!