¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, novembro 16, 2011
 
GADES, EL ATARANTADO


Carmen me libera, dizia Nietzsche. Bizet, infelizmente, não teve ocasião de ouvir esta confissão proferida pelo espírito mais refinado de seu século: amargurado pelas violentas e injustas críticas feitas à ópera, morreu na noite de sua 33ª apresentação. Antonio Gades, bailaor alicantino e emérito pizzaiolo, traz ao Brasil sua versão de Carmen e pode estar seguro de que não sofrerá o que sofreu Bizet. Desde que dance e se mantenha silente.

Não sei se Gades sabe, mas em meu último ano sabático em Madri, freqüentei sua casa quase todas as semanas. Falo da Casa de Gades, pizzaria que fica próxima à Biblioteca Nacional e ao Museu do Prado, o que tem suas vantagens e desvantagens. Vantagens, porque após uma aula sobre Velázquez ou Goya, era sagrado um osso bucco chez Gades. Desvantagens, porque após umas que outras de Valpolicella, embalados pela ambiência afável do restaurante, atravessar o Paseo de Recoletos para chegar até a biblioteca é esforço que exige fibra sobre-humana. Sem falar que entre a Casa de Gades e a Biblioteca Nacional se situam, solertes, El Gijón e Los Espejos, à espreita do pesquisador incauto. Assim que, se jamais consegui atravessar o Paseo de Recoletos, a culpa é um pouco do atarantado alicantino que ora nos visita.

Digo atarantado por alusão a Nietzsche, este alemão enamorado de Carmen, que dizia não poder acreditar em um deus que não soubesse dançar. Assim falava Zaratustra: “Olha, esta é a toca da tarântula! Queres vê-la, a ela mesma? Está aqui a sua teia: toca-lhe para a veres tremer!”

Tarântula é uma aranha grande que vive entre as pedras e buracos profundos e abunda na cidade de Taranto, Itália. Sua picada é extremamente venenosa e de seu nome vem a tarantela, dança napolitana de movimentos muito vivos. Daí vem “Los Tarantos”, grupo de dança espanhol. Como também atarantado, isto é, Gades falando em vez de sapatear.

Falando em sapatear, meus interlocutores de esquerda dão pulinhos de ódio quando sugiro que rezem ao bom Deus para que conceda longos anos de vida e governo a Alfredo Stroessner. Não que eu nutra simpatias pelo homem. Acontece que quando Stroessner morrer, a desconfortável comenda de decano dos ditadores latino-americanos será carregada por Castro, guru de Gades.

Pois o bailaor, em suas declarações à imprensa, sempre vai além de suas pizzas. Diz que Carmen representa o ideal da própria Espanha, que renasceu das cinzas após uma ditadura brutal de quarenta anos. Castro sapateia em cima dos direitos mínimos dos cubanos — para começar a liberdade de ir e vir — já faz quase trinta anos e, para Gades, esta ditadura é boa, pois é de esquerda. Seus contínuos salamaleques ao gulag tropical gerido por Moscou já quase me fizeram renunciar a seus dotes de pizzaiolo. Meus colegas, mais realistas, acabavam arrastando-me à Casa de Gades: “Calma, Cristaldo. Estamos com fome e o resto é veleidade ideológica”.

Siete son las fases de la castaña — dizem os espanhóis — e por castaña, no caso, leia-se porre. A saber:

— copeo
— rudo copeo
— cantos marítimos y regionales
— franca amistad
— insultos al clero y autoridades constituídas
— negación de la evidencia
— y devolución del ingerido.

Devo ter chegado, nas tardes que passei chez Gades, certamente até à quinta fase, lembro ter erguido brindes como “¡Muerte a los maridos!” e “¡Las putas al poder, que sus hijos allá ya están!” Mas Gades, mesmo sóbrio, parece chegar à sexta fase, sem passar pelas precedentes. O que é deplorável em seu caso, de homem que se pretende cosmopolita e bem-informado.

Dizer que Carmen é um ideal libertário renascido das cinzas do franquismo é afirmação de um homem que fez toda sua carreira sob o regime de Franco. A Espanha é hoje país livre, com eleições livres e se dá até mesmo ao luxo de ter rei e família real.

Constituí atualmente uma das mais dinâmicas economias do continente europeu e um dos mais belos países para se descobrir e viver. Não fosse Franco, os espanhóis viveriam hoje certamente sob ditaduras de economia ao estilo do Leste europeu, onde até para se comprar uma máquina de escrever é necessário registrá-la na polícia. Escritores como Ramón Sender e Jorge Semprún, que lutaram décadas contra Franco, viveram a clandestinidade e sofreram prisão e exílio, ao conhecer a realidade dos países socialistas, concluíram amargamente ter combatido o mau combate. Gades, que não combateu nem foi forçado a exilar-se, vira o cocho condenando o regime onde viveu e cresceu como artista.

Em algo, no entanto, o bailaor é coerente: comunista exemplar, como seu guru Castro, adora dólares. Ou capitalistas marcos ocidentais, que marcos do outro lado do Muro pouco lhe interessam. E seu espetáculo no Brasil não se dirige ao proletariado, mas a um público burguês capaz de despender quase um salário mínimo em uma noite. Gades justifica que numa sociedade justa, em um Estado socialista, os espetáculos seriam de graça. Pela experiência que tenho de tais “sociedades justas”, nelas os espetáculos nunca são de graça e mais: o turista é sistematicamente despojado de seus dólares.

Se o leitor viajar um dia a qualquer país europeu e não souber orientar-se em sua geografia gastronômica, sugiro procure alguma célula ou sede do partido Comunista. Todo militante, à força de lutar contra a fome no mundo, sabe onde melhor matá-la. Não é por acaso que um dos mais orgíacos festivais de bem comer na Europa é a Fête de l’Humanité, a festa do PC francês, que se realiza a cada segundo fim-de-semana de setembro no parque La Courneuve, ao norte de Paris. Afinal, como dizia aquele outro emérito gourmet, Bertold Brecht, não pode ser revolucionário quem não sabe comer bem, beber bem e bem tratar uma mulher na cama.

Mulheres à parte, a Casa de Gades em Madri é uma verdadeira escola revolucionária. De excelente cozinha, vinhos de boa cepa, nela o militante se prepara para o agir revolucionário bem melhor que nos canaviais de Cuba ou nos cafezais da Nicarágua. Neste sentido, Gades se revela autêntico revolucionário, e de revolução muito aprendi em sua escola. Freqüentada por intelectuais, escritores, jornalistas, artistas de teatro e cinema, toreros, verdade que nela jamais vi aqueles operários de macacão azul que abundam nos demais cafés e restaurantes de Madri. Mas, enfim, a revolução é assunto por demais importante para ser entregue às mãos de operários.

Assim que, parece-me absolutamente improcedente a queixa de um estudante pobre no Rio, que perguntava ao bailaor porque não fazer um espetáculo acessível a quem tem pouco dinheiro. Revolução é affaire para elites, ora bolas! “Compañero — respondeu Gades — guarde uma pergunta dessas para quando falar com um inimigo de classe”. Pois eu sou amigo de classe de Gades e confesso que já morro de saudades das etílicas tardes que passei em sua Casa.

Carmen é como Che Guevara, declarou Gades em São Paulo, e os ossos do argentino nesta altura já devem estar se contorcendo em sua tumba desconhecida. Pois, se bem me lembro, Che empunhava um fuzil. Quanto a Carmen, com todo meu respeito pela obra de Merimée, do que ela empunhava já nem falo.

O sr. Antonio Gades está subestimando o nível de informação no país que ora o recebe. Para promover seu espetáculo não precisa usar recursos assim demagógicos. A mítica Cuba revolucionária hoje não passa de uma Disneylândia das esquerdas, para onde partem em românticas revoadas aburguesados senhores em busca dos sonhos de adolescência, pois sentir-se-iam ligeiramente ruborizados se fossem visitar a Disneylândia gringa.

Dito isto, vou assistir Gades. Que dance. ¡Y, por favor, hombre: cállese!


Blumenau, Jornal de Santa Catarina, 07.05.88