¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

domingo, novembro 13, 2011
 
GIN DISSE ASSIM? AMÉM!


Voltando da Patagônia, tive a grata surpresa de ler uma saraivada de artigos xingando singela crônica que publiquei neste jornal, tendo “Lá!” como título, pois para lá eu mandava os arautos do totalitarismo. Sem falar que soube que seis sacerdotes da região de Joinville, em vez de contestar-me nas páginas sempre abertas deste jornal, queriam, através de um abaixo-assinado, nada mais nada menos do que privar-me de voz.

Lástima que faltou a assinatura do bispo. A estes senhores, meus agradecimentos, pois a mim me agrada lançar idéias que confundem, já que de certezas estamos fartos. Adoro irritar aiatolás, sem falar que sei que tenho, daqui pela frente, seis fiéis leitores a mais destas mal-traçadas. Mas o que mais me surpreendeu não foi a previsível reação do obscurantismo. Foi, isto sim, o ulular das esquerdas. Só porque, em “Lá!”, manifestei minha ojeriza a regimes ditatoriais. Meu pecado parece ter sido falar mal do mundo socialista e, particularmente, da Disneylândia das Esquerdas, o gulag tropical instalado por Castro no Caribe, Cuba, a intocável.

Entrecruzaram-se artigos louvando o bem-estar cubano e as mazelas nossas, automaticamente atribuídas ao capitalismo. Para responder a meus oponentes, teria de escrever três ou quatro ensaios, tantas são as objeções destes senhores que, vivendo em um país onde uma cervejinha gelada não é privilégio da Nomenklatura, louvam sistemas pelos quais talvez passaram mas onde certamente jamais viveriam, tanto que cá estão. Tal atitude traz-me à lembrança discussão que tive na Hauptbahnhof de Berlim Ocidental, com duas amigas que lá moravam, sempre louvando o regime do outro lado do Muro. Detentoras de ações de sólidas empresas brasileiras, insistiam em louvar o regime do lado de lá. Mas por que vocês não vão então morar lá? — quis saber.

A fronteira estava ali, a poucos minutos de distância, bastava tomar um trem para entrar no paraíso, eu jamais vira duas crentes tão perto do céu. “Ah! Mas acontece que morar lá não é fácil”, resmungaram as duas, meio sem jeito. Em suma, paraíso onde ninguém quer viver e, de onde, os que lá vivem, não podem sair, não me convence. Raros, para não dizer raríssimos, foram os exilados que se refugiaram em Havana ou Moscou. A maioria preferiu as delícias capitalistas de Paris, Berlim ou Estocolmo.

Em meus dias de Europa, assisti palestras de exilados que afirmavam só voltar ao Brasil de metralhadora em punho. Mal saiu a anistia, voltaram sem metralhadora alguma, e chorando. Diga-se o que quiser do Brasil, não é fácil conter as lágrimas, após uma prolongada estada no Exterior, quando avistamos o Corcovado, apesar daquele Cristo horrendo estaqueado lá em cima. Digam o que quiserem os defensores de novas Jerusaléns: a qualquer pessoa de bom senso não convence a imagem de sociedades tão perfeitas que proíbem seus cidadãos de delas sair.

Não vou mergulhar no mar de depoimentos e bibliografias de pessoas que de lá saíram, sem falar nos crentes que para lá foram e de lá voltaram sem fé, sem falar no noticiário dos “jornais” — se é que press-release é jornalismo — que desses países nos chegam. Entrar nesta discussão é repetir meio século de testemunhos. Prefiro um atalho: derrubem o Muro de Berlim, concedam a cada cidadão destes países o direito a passaporte e a possibilidade de usá-lo quando bem entendam.

Os brasileiros estão fazendo turismo em massa em Cuba, não é verdade? Não só em Cuba, como pelos Estados Unidos e Europa. Turismo é comércio de ida-e-volta, não é verdade? Quando veremos, então, cidadãos cubanos circulando livremente pelo Brasil e pelo mundo? Quando veremos o Jornal do Brasil, O Estado de São Paulo, Le Monde, El País, distribuídos nas ruas de Havana? Mais ainda: quando veremos o Granma distribuído no Brasil? Não há restrição alguma no atual Brasil à imprensa cubana, e se o Granma aqui não está, será por certo por pudor dos guardiães do gulag caribenho, que não ousam exibir como jornalismo um diário oficial.

Não quero repetir argumentos que repito há mais de décadas. Mais ainda: não quero repetir as denúncias de Panaïti Istrati, Camus, Gide, os precursores. Cansa-me falar da affaire Kravchenko, de 1949. Cansa-me repetir as denúncias de Kruschov no XX Congresso. Se meus contestadores tivessem lido com atenção John W. F. Dulles — copiosamente documentado, como diz Gilson Pereira — lembrariam que Stalin enviou, para comunizar o Brasil, três devotos, a saber: Luís Carlos Prestes, de cognome Garoto; o argentino Rodolfo Ghioldi, o Índio, e o alemão Artur Ernst Ewert, o Negro. Os membros do Partido passaram a designá-los por seus codinomes e, quando a eles se referiam, diziam: “GIN disse isso, GIN pensa assim”.

Sem falar em Olga Benário, cidadã berlinense e oficial do Exército Vermelho, que desembarcou com Prestes — consta que após tê-lo desvirginado — aqui na praia do Campeche. As esquerdas até hoje condenam Vargas por tê-la deportado para a Alemanha. Acontece que mais tarde Prestes apoiou o homem que enviou sua mulher à morte, sem falar que condenou à morte Elza Fernandes. Por favor, que Gorbachov abra os arquivos de Moscou, só depois começarei a pensar em transparência. Se GIN continua pensando assim, há muito deixei de ser fanático.

É triste, mas ao mesmo tempo compreensível, ver que, se a Europa já renegou o stalinismo, os latino-americanos ainda o adotam como conduta. E os tempos são propícios. A múmia de Joseph Vissarionovitch Djugatchivili deve estar se remoendo de inveja com os funerais sangrentos do aiatolá Khomeiny. Cansei, disse, não quero voltar a esta discussão já exaurida na Europa. Só quero, em meio à saraivada das carpideiras, salientar dois itens.

Primeiro, meu artigo nada tem a ver com o macartismo dos anos 50, para começar nessa época eu vivia em Dom Pedrito, longe de qualquer debate do gênero. Todos os testemunhos que constituem o corpo de “Lá!” partem, ou de minha experiência pessoal em alguns países comunistas, ou de depoimentos que recebi de jovens que fogem daquele mundo, e os últimos depoimentos são de dois meses atrás. Bem que gostaria, não apenas de revelar minhas fontes, como também de entrevistá-las. Mas como entrevistar alguém que deixa reféns no país do qual foge? Muito me alegraria saber que tudo que escrevi naquela crônica são águas passadas, coisas dos anos 50. Acontece que não são.

A meus interlocutores, que tanto defendem a utopia comunista, sugiro que para lá viagem. Mas, por favor, não em excursões. Que viajem sozinhos, como se viaja em qualquer país da Europa de cá, podendo escolher hotel, restaurantes, itinerários, anfitriões, amigos, interlocutores. Digo mais: que tentem viver dois ou três anos em tais regimes e, se o conseguirem, depois me contem se ao descer neste mundo podre ocidental, não lhes acomete a vontade de curvar-se e beijar a terra, como faz o João Polaco por onde anda.

Segundo: se alguém denuncia o totalitarismo nos países comunistas, não falta quem evoque a miséria do lado de cá, no caso, a do Brasil. Certo, miséria existe em meu país, urge erradicá-la e, o que é pior, dentro das atuais propostas políticas, não vejo como erradicá-la. Mas há uma diferença: se um cidadão qualquer, habitante de qualquer favela, quiser instalar sua carrocinha de cachorro-quente, jamais será considerado um inimigo da sociedade perfeita. E se, com o lucro de sua carrocinha, quiser viajar, seja a Rivera ou Assunção, seja a Buenos Aires ou Paris, autoridade alguma lhe barrará a saída. Não estou falando de utopias: quem gere uma carrocinha de cachorro-quente hoje, neste Brasil, pode ganhar bem mais que um jornalista ou professor universitário. Diga-se o que quiser deste Brasil e seus problemas. Mas dele não é proibido sair. Xingar o presidente é rotina, denunciar a corrupção não leva à Sibéria. Verdade que tais denúncias geralmente têm caído no vazio, mas o problema já não é mais da alçada da imprensa. Este debate nesta página seria inconcebível em qualquer das sociedades defendidas por meus contestadores.

Viajem, meninos, viajem. Viajem e comparem. Mas, por favor, repito, jamais em excursões organizadas. Viajem sem mordomias e sem preconceitos. Viajar a um país só não vale. Um nordestino, por exemplo, que acha que chinelo de dedo é sapato, certamente se deslumbrará com as botas dos moscovitas. O paraíso é lá, onde todo mundo anda calçado. Acontece que em um inverno lá deles, andar descalço é suicídio. No Nordeste, passa por conforto. Aos que defendem regimes que não conhecem, ou que, se os conhecem, conhecem-nos como turistas, sugiro conhecer outros países e sistemas. O homem só valora comparando.

Tenho um amigo que bordejou os países socialistas, sem jamais neles penetrar, com medo de ver feita em cacos sua utopia de juventude. Em Berlim Ocidental, olhou de binóculos o paraíso. Mas não ousou atravessar o Muro. Hoje, tenho assistido o fenômeno inverso. Os peregrinos que rumam a Cuba ou Nicarágua, em geral recusam-se a visitar o Chile ou Argentina, bem mais próximos e baratos e livres, temendo ter de renunciar a seus dogmas. Pertencem a uma geração de jovens envelhecidos antes da idade normal do fenômeno, como diria Machado.

“O socialismo, para Cristaldo, é um inferno”. Este tipo de socialismo para mim é, de fato, um inferno. Verdade que lá as pessoas riem e choram, cantam e dançam, bebem e trabalham, como sói acontecer em todo e qualquer país, por pobre que seja. Mas a opressão paira no ar, podemos respirá-la mal se atravessa a fronteira. Isto não li na imprensa “burguesa e comprometida”. Isto respirei nos países por onde andei. E se o leitor quiser ter uma pálida idéia do que o espera por lá, que passe em uma agência qualquer de turismo e peça a seu agente: olha, preciso estar em Roma dentro de 24 horas. Se houver vaga em avião, pode chegar lá até mesmo antes. Mas digamos que o leitor mudou de idéia, precisa estar em Moscou na semana que vem. E depois, por favor, me conte o que o agente lhe disse. Totalitarismo, mesmo de longe, fede.

Viajem, velhotes. Viajem e comparem e depois me falem. Quanto ao resto, perguntou-me um dia minha filha o que era o infinito. Em seus seis anos, claro que não falava da noção matemática de infinito. Seu cérebro já começava a ser invadido pelo obscurantismo papista, pois toda escola, mesmo a leiga, está por ele contaminado. Enfim, a pergunta havia sido feita e uma resposta era esperada. Tentei uma ao alcance de sua compreensão, algo que fosse tangível, palpável:

— Infinito, minha filha, é a burrice das esquerdas.

Joinville, A Notícia, 18.06.89