¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, novembro 29, 2011
 
PSICANALISTA, MARXISTA
E, NATURALMENTE, BURRO



Pior que um psicanalista, só um psicanalista marxista. Verdade que as duas doutrinas são incompatíveis. Mas nestes dias que me foram dados viver, em que há católicos-marxistas, publicitários de esquerda, médicos espíritas e professores universitários que acreditam em Deus – e pior, orientam teses -, nada mais me espanta.

Em entrevista à Folha de São Paulo, o psicanalista britânico Adam Phillips não pede licença para proferir bobagens.

Folha - Em Monogamia, o senhor diz que não há nada mais escandaloso do que um casamento feliz. Por quê?

Adam Phillips - O que amamos e odiamos num casamento feliz é ver nossos primeiros desejos e medos acontecendo na vida real. Toda criança começa seu desenvolvimento em uma relação monogâmica, com a mãe. E a maioria passa os primeiros 11, 15 anos da vida muito conectada a mãe e ao pai. É uma espécie de monogamia bissexual. Crescer é passar da necessidade de ter só uma pessoa para a necessidade de ter duas (mãe e pai) e a necessidade e a capacidade de se relacionar com várias.


Cá entre nós, que tem a ver relação com pai e mãe com monogamia bissexual? Como bom herdeiro de Freud, Phillips não consegue escapar à tese idiota de que toda relação de um filho ou filha com os pais está eivada de sexualidade. Não existe psicanálise sem o complexo de Édipo ou Electra. É um dogma tão fundamental para a doutrina como a virgindade de Maria para a Igreja. A repórter pergunta então se, diante das dificuldades da monogamia, a solução não seria a infidelidade.

Adam Phillips - Sim. E pode dar certo, mas sempre com conflito. Todo mundo tem ciúme sexual, ninguém suporta dividir seu parceiro de sexo. Alguns dizem que suportam, mas é impossível. Se amamos e desejamos alguém, não queremos dividi-lo com outros.

Parece que o celebrado psicanalista nasceu lá pelo século XIX. Até pode ser que ninguém suporte dividir seu parceiro de sexo, mas a verdade é que todo mundo – ou pelo menos uma significativa maioria – acaba dividindo. As mulheres até podem se manter mais ou menos – mas não muito – fiéis, mas os varões sempre acabam pulando a cerca. O que mais existe são relações polígamas sob uma aparência de monogamia.

Por outro lado, o conceito de infidelidade, tanto o expresso pela jornalista como o aceito pela psicanalista, é falso. Infidelidade não é ter relações com terceiros. Infidelidade é esconder essas relações do parceiro. Sempre fui polígamo e jamais me considerei infiel. Nunca escondi de minha mulher ou de minhas amigas minhas relações outras. Não se trata de apresentar um relatório detalhado, nada disso. Basta que a parceira – ou o parceiro – saiba que tais relações existem. Acho muito difícil, neste nosso mundo contemporâneo, manter relações monógamas. Difícil mas não impossível. Conheço algumas. Mas se contá-las nos dedos, me sobra um monte de dedos.

Mas o melhor – ou pior, conforme a ótica – vem adiante. A entrevistadora quer saber se a monogamia é uma experiência tão real quanto a traição. Responde o psicanalista:

As duas formas são construções sociais. O capitalismo trivializou a paixão, fez com que as pessoas se desiludissem em relação ao amor. Isso leva a pensar que as relações sexuais são algo que se compra no mercado só para levar a vida adiante. O capitalismo tenta dissuadir a criação de vínculos reais. E valoriza demais o prazer. E, para a psicanálise, o prazer é sempre um problema. Qualquer pessoa que te venda um prazer fácil está mentindo. Se o que queremos é prazer profundo, com troca entre pessoas, ele será difícil, cheio de conflitos.

Quando alguém condena o capitalismo, ipso facto está afirmando que na outra sociedade – a socialista – as coisas seriam diferentes. A deduzir-se de suas palavras, o amor só existe no mundo socialista. Como se no mundo socialista não houvesse sexo pago. O capitalismo tenta dissuadir a criação de vínculos reais? Mas que vínculos reais existiam no mundo socialista, que priorizava os vínculos com essa entidade abstrata, o Estado? O capitalismo valoriza demais o prazer? Ora, quem não valoriza o prazer? E, afinal, que há de mal em valorizar o prazer? Se para a psicanálise o prazer é um problema, este problema é dos psicanalistas. Phillips conclui suas sandices com uma chave de ouro: “se o que queremos é prazer profundo, com troca entre pessoas, ele será difícil, cheio de conflitos”.

Desde quando o tal de prazer profundo é difícil, cheio de conflitos? E por que há de ser difícil, cheio de conflitos? Adam Phillips é a mais viva demonstração de que, para um psicanalista, toda pessoa tem conflitos. Até mesmo quem tem prazeres profundos. Você está bem consigo mesmo? Não pode ser. Você deve estar cheio de conflitos. Ou então a psicanálise não teria sentido.

A entrevistadora quer saber “do que precisamos, afinal?”

De boas histórias que nos ajudem a viver. As únicas verdades úteis são as que nos ajudam a viver. Num relacionamento, o que você precisa é criar uma história na qual se sinta vivo com a outra pessoa.

Hoje, temos mais opções para criar essa história?

Não sei. A cultura liberal oferece mais escolhas do que havia antes. Mas o capitalismo cria a ilusão de que temos muitas escolhas, quando na verdade temos muito poucas.


Devo ser alguma espécie de monstro moral. Nunca precisei de boas histórias que me ajudassem a viver. Precisei, isto sim, de trabalho, de amigos e amigas. É o que dá algum sentido à vida, a esta vida que em si não tem sentido algum. Não consigo entender o conceito de verdades úteis. Verdade é verdade, seja útil ou inútil. Nunca precisei criar histórias para sentir-me vivo com outra pessoa. A outra pessoa me bastava, sem precisar de qualquer história.

Quanto a afirmar que no capitalismo temos poucas escolhas, isto é bobagem que nem merece ser comentada. No capitalismo, as escolhas são tantas que chegam a atordoar os pobres de espírito. Espanta ver a Folha dar tanto espaço a quem profere tantas bobagens.

PS - Falar nisso, trouxe de Paris dois livros sobre o embuste. Le Crépuscule d’une idole – l’affabulation freudienne, de Michel Onfray, e Le Livre noir de la psychanalyse – vivre, penser et aller mieux sans Freud, de vários autores, coordenados por Catherine Meyer. Provavelmente voltarei ao assunto.

Ou não.