¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, dezembro 04, 2011
 
BELARUS AGORA
VIROU EUROPA



Leio no UOL uma manchete dramática:

DITADURA EUROPÉIA PROÍBE
EMPRESÁRIO DE RESPIRAR
EM PRAÇA PÚBLICA


O redator, obviamente, é uma das viúvas do Kremlin. Os marxistas sempre detestaram a idéia de Europa. No fundo, o antigo ódio de Marx ao velho continente, expresso na primeira fase do Manifesto: um fantasma ronda a Europa, o fantasma do comunismo. Mas vamos à notícia:

Autoridades de Belarus proibiram um empresário de respirar na praça central de Baranovichi. Segundo o governo local, isso violaria as leis que regulamentam protestos e manifestações públicas.

Nikolai Chernous entrou com um pedido na prefeitura local para pode fazer seus exercícios respiratórios por duas horas diariamente perto do memorial de Lenin, no centro de Baranovichi.

No entanto, as autoridades negaram o pedido alegando que violaria a nova lei sobre protestos e manifestações públicas. Isso mesmo, nada de roubar o oxigênio da população durante um exercício de caráter claramente subversivo. Chernous já havia tentado organizar duas manifestações contra a burocracia no país, mas ambas foram proibidas.

Belarus vive sob um regime ditatorial. O presidente Alexander Lukashenko está no poder desde 1994 e proíbe todo tipo de crítica contra seu governo.


Depois da queda do Muro de Berlim, o Leste europeu virou Europa. Há mais de dez anos, um leitor de Estocolmo contestava uma de minhas crônicas, com veemência. Que na Europa há miséria, sim senhor: “a Romênia tem muitos meninos de rua, sem contar a Rússia, Albânia. Vi muita pobreza em Portugal, Espanha, Alemanha, Holanda, Bélgica, Inglaterra. Até aqui em Estocolmo tem mendigo”.

Vamos por partes. Há mais de vinte anos, havia uma Europa e um Leste europeu perfeitamente distintos. No Leste, universo socialista, estavam os países da União Soviética onde, por definição, não havia desemprego nem greves ou conflitos trabalhistas. Muito menos miséria, mendigos, meninos de rua, estas mazelas decorrentes dos regimes capitalistas da velha Europa. Com a queda do Muro e o desmantelamento da URSS, a miséria oculta dos regimes socialistas veio à tona.

De repente, a Rússia, Albânia ou Romênia passaram a fazer parte da Europa. Há mendigos morrendo de frio em Moscou? FRIO MATA MENDIGOS NA EUROPA — dizem as manchetes. Quem só costuma ler as primeiras páginas nos quiosques ou zapear TV já passa a imaginar mendigos morrendo nas ruas de Paris, Londres, Berlim. Os jornalistas são hábeis em matéria de trocar sinais. As misérias herdadas de sete décadas de tirania socialista passam agora a ser debitadas à Europa. O leitor menos avisado, que desconhece a arte de manipular conceitos, acaba caindo nos sofismas diariamente repetidos pela grande imprensa. Nesta época televisiva, ninguém mais lembra que Dostoievski passou a vida toda bradando, ao falar dos russos: não somos Europa.

Já contei, conto de novo. O que é Europa? À primeira vista, a resposta é fácil. É aquele continente que de sul a norte vai da Grécia até a Escandinávia e de leste a oeste vai de Portugal à Áustria. É o que um dia chamamos de a Europa dos Quinze: Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Espanha, Finlândia, França, Grécia , Irlanda, Itália, Luxemburgo, Países Baixos, Portugal, Reino Unido e Suécia. Há uns bons vinte anos, tive acirrada discussão com um desses jornalistas que quando vão ao Uruguai acham que já estão no estrangeiro. Ele, como bom comunista, defendia a tese de que a Rússia era Europa.

Ora, nada mais anti-europeu que a Rússia. Em um discurso em homenagem a Pushkin, Dostoievski já se perguntava: “O que tem feito a Rússia durante dois séculos senão servir mais à Europa do que a si mesma?” Durante toda sua vida, o escritor católico russo sustentou que “nós, russos, não somos europeus”. Mas e a plataforma continental européia? – insistia o jornalista. Ora, plataforma pertence à área da geografia. E a definição de Europa não é geográfica, mas política e cultural.

As palavras dependem muito de ideologia. Darcy Ribeiro, também comunista, detestava a Europa e a definia como "aquela peninsulazinha da Ásia, dobrada sobre a África". Já Guimarães Rosa, não contaminado pelo sarampo do século passado, a via como “pequena e ativa”. Mas tanto na "peninsulazinha" de Darcy, como no "pequena" de Rosa, não cabia o colosso russo.

Antes de ser acidente geográfico, Europa é um conceito político, até hoje em construção. Juridicamente, a Europa daqueles dias era configurada pelo Acordo de Maastricht, que criou a União Européia, por sua vez baseada na Comunidade Européia. Neste espaço não se incluíam nem a finada União Soviética, nem os países do Leste Europeu, assim denominados justamente por não pertenceram ao que, politicamente, se considerava Europa. Isto é, a Europa dos Quinze. Que pressupõe democracia, sistema que a coitada da Rússia até hoje, mesmo após o desmoronamento da URSS, não conhece. Do tzarismo caiu no comunismo. Morto o comunismo, caiu nas mãos da Máfia.

Que mais não seja, diz-nos a Enciclopédia Britânica: “Geógrafos modernos tratam a antiga União Soviética como uma unidade territorial distinta, comparável a um continente, separada da Europa ao oeste e do resto da Ásia ao sul e ao leste. Esta distinção indubitavelmente deve ser mantida para a Rússia, que ocupa três quartos da União Soviética”.

Propus ao jornalista minha definição de Europa. No final dos 70, voltando de uma viagem da ex-Iugoslávia para a França, reservei um assento em uma cabina no trem Skopje/Belgrado. Escolhi uma cabina vazia e peguei assento na janela: se não dormisse, poderia praticar esse esporte que tanto me apraz, ver florestas, montanhas e neves desfilando ante meus olhos. Mal sentei, entrou o cobrador, seguido de uma prolífica família de iugoslavos. Junto com o cobrador, vinha um policial - acompanhado de um cão da mesma raça - com uma submetralhadora em punho. O cobrador mandou-me sair da cabina.

Ingênuo e indefeso, eu exibia meu bilhete, mostrava o número nele e no assento, tentava explicar em todas as línguas que conhecia que tinha direito àquele lugar. Lacônico, o homem da submetralhadora me indicou a porta com o cano da arma. Que fazer ante tão sólida argumentação? Evidentemente, eu não estava mais na Europa. Iugoslávia, já em seu étimo, quer dizer eslavos do Sul.

Para meu consumo, entendo Europa como um espaço onde você pode reclamar um selo que uma máquina não forneceu e ser gentilmente ressarcido. São pequenas coisas. Que pressupõem séculos de história atrás de si. Mas se você, ao defender o direito a um assento, recebe um cano de metralhadora na boca... bom, aí já não é mais Europa.

Hoje a Europa cresceu, tem 27 membros. Depois de 2004, absorveu a República Checa, Chipre, Eslováquia, Eslovênia, Estônia, Hungria, Letônia, Lituânia, Malta, Polônia, Bulgária e Romênia. Tem nova definição, pelo menos em termos oficiais. Na Europa dos Quinze entraram alguns países onde você arrisca receber um cano de metralhadora na boca. De minha parte, preservo a antiga definição. Hoje temos uma Europa de primeira classe e outra de segunda classe. Os europeus da primeira classe estão muito cientes disto. Eu também.

Comunismo, se morreu nos antigos países comunistas, ainda não morreu neste país incrível, que vive a reboque da História. Quando um jornalista fala em ditadura européia, está querendo debitar à Europa as mazelas do antigo mundo comunista.

Belarus nunca foi Europa. Longa é a jornada de um comunista até o entendimento.