¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, dezembro 18, 2011
 
In memoriam Vaclav Havel:
UM ESCRITOR SEM MEDO *



Praga - A vida é como uma viagem aos países do Leste - dizia-me um jornalista espanhol -, curta e cheia de aborrecimentos. Suas observações, é claro, datavam do ano passado. Corroído desde dentro o regime tão amado pela intelligentsia brasileira, regime que durante décadas devastou os povos do Leste, viajar por estas bandas torna-se interessante. Em Berlim, junto à porta de Brandenburgo, onde consegui arrancar alguns cacos do Muro antes que fosse posto abaixo pelos seus construtores, o ruído incessante dos martelos escavando o símbolo maior da Guerra Fria foi música para meus ouvidos.

Estou agora em Praga. Segundo observadores temerários, a cidade mais linda do mundo. Opinião discutível para quem viveu em Paris. Mas isto pouco importa. E sim Vaclav Havel. No ano passado estava no cárcere e hoje é presidente da Tcheco-Eslováquia. Tudo muda neste mundo, e mais rapidamente do que se pode imaginar. Como dizia Marx, profeticamente, tudo que é sólido se desmancha no ar.

- Não encontrei um único relógio nos gabinetes do Castelo de Praga - disse Havel em seu primeiro discurso ante o Parlamento -. Considero isto como algo simbólico. Durante longos anos não havia porque olhar um relógio, pois o tempo estava parado. Em realidade, foi a História que parou.

Vaclav Havel é escritor, dramaturgo e ensaísta. Sofreu quatro anos de prisão lutando contra o regime comunista cuja defesa levou ao cárcere míopes intelectuais brasileiros e latino-americanos. Antes de partir para a Tcheco-Eslováquia, decidi munir-me de alguma informação sobre o país. Publicações oficiais louvavam os grandes feitos do socialismo. O mesmo não diria - nem disse - Havel em seu discurso.

- Durante quarenta anos temos escutado a mesma coisa da boca de meus predecessores, embora apresentada de formas diferentes: nosso país floresceu, produzíamos tantos milhões mais em aço, somos todos felizes, temos fé em nosso governo e brilhantes perspectivas pela frente. Suponho que não me propuseram para este cargo com a finalidade de que eu também lhes minta. Nosso país não floresce. Este estado, que pretende ser um estado de trabalhadores, humilha e explora os trabalhadores. Devastamos a terra, os rios e os bosques, patrimônio de nossos antepassados, e temos o mais poluído meio ambiente de toda a Europa. Mas isto não é o principal. O pior é que vivemos em um meio moral putrefato. Estamos moralmente doentes porque nos acostumamos a dizer algo diferente do que pensamos. Aprendemos a não acreditar em nada, a não nos importarmos uns com os outros, a não nos ocuparmos senão de nós mesmos. Definições tais como o amor, a amizade, a compaixão, a humildade ou o perdão perderam suas dimensões e sua profundidade e significam para nós uma espécie de peculiaridade psicológica, que interpretamos como mensagens errantes de tempos passados, um tanto ridículos na era dos computadores e dos foguetes espaciais.

Em minhas rápidas incursões pelos países socialistas, sempre intuí nos rostos e gestos um medo latente pairando no ar. Medo de falar com o viajante estrangeiro, medo de falar alto, medo de emitir qualquer opinião não sacramentada pelo poder. Este medo, diga-se de passagem, só fui encontrá-lo no Brasil em duas ilhas: Brasília e Florianópolis, coincidentemente os dois mais corruptos currais eleitorais do país. Mas estou na Tcheco-Eslováquia. Em uma carta aberta a Gustav Husak, datada de 1975, Havel propunha uma questão fundamental: por que as pessoas se comportavam como o faziam? Por que cumpriam todos tudo aquilo que, globalmente, dava a impressão de uma sociedade totalmente unida, apoiando totalmente seu governo? Para Havel, a resposta era então evidente: o medo.

- Por medo de perder seu posto, o professor ensina a seus alunos coisas nas quais não acredita. Por medo de seu futuro, os alunos o repetem. Por medo de não poder continuar seus estudos, os jovens aderem à União da Juventude e fazem o que se lhes pede. Por medo de que seus filhos não obtenham, ao entrar na universidade, o número de pontos exigidos pelo monstruoso sistema de conotação política, o pai aceita as mais diversas funções e faz "voluntariamente" o que lhe é exigido. Por medo de eventuais perseguições, as pessoas participam das eleições, votam nos candidatos propostos e fingem tomar esta liturgia por verdadeiras eleições. Por medo, as pessoas assistem às comemorações, manifestações e desfiles. Por medo de serem impedidos no prosseguimento de seu trabalho, cientistas e artistas defendem idéias às quais não aderem, escrevem coisas que são falsas, associam-se a organizações oficiais, participam de trabalhos dos quais têm péssima opinião, ou ainda amputam ou deformam suas próprias obras.

Denunciar o medo exige coragem, Vaclav que o diga. Sua coragem custou-lhe anos de cárcere e agora parece contaminar os tchecos. Pela primeira vez em um país socialista, consegui falar de política, abertamente, com um desconhecido encontrado ao azar em um café. "É o começo do fim", dizia-me com entusiasmo um tcheco, embalado por uma cerveja de Praga, a 12 graus. E brindamos em altos brados - gesto insólito nas ditaduras socialistas - ao fim do regime infame.

Mas o fim ainda não chegou. Como bem acentuava meu interlocutor, estamos assistindo ao começo do fim. "O medo não é - escrevia Havel a Husak -, o único material de construção de nossa sociedade atual. Mas continua sendo, no entanto, o material essencial".

Estes povos, para os quais a História parou e os relógios não têm sentido, necessitarão de mais algumas décadas para readquirir o aprendizado da fala e do livre debate. Pode ser até verdade que a vida seja curta e aborrecida, como filosofava meu colega espanhol. Mas voltar a Praga será sempre cada vez mais interessante.


* Porto Alegre, RS, 31.03.90