¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, janeiro 21, 2012
 
Entrevista antiga:
FORA DA LEITURA
NÃO HÁ SALVAÇÃO



É chegada a hora de publicarmos a entrevista tão esperada com o polêmico Janer Cristaldo, ateu convicto e, mais importante, lettré. Só espero que com isso se reafirme o caráter do pluralismo de fato a que este periódico visa. Porém, dessa vez, não faço longo intróito, ainda que repita o adágio: pelas palavras conhecereis o homem. Boa leitura.

Martin - Você deixou o teísmo muito cedo. Poderia nos contar como foi essa experiência? Como você vê o papado de Joseph Ratzinger e o seu conservadorismo? É salutar como apregoam os defensores do catolicismo lato senso ou na verdade é uma coisa sinistra em pleno século XXI?

JC - Em minha adolescência, eu vivia torturado pela idéia de pecado, principalmente no que se referia a sexo. Tampouco conseguia entender os dogmas que me haviam sido enfiados na cabeça, durante a catequese. Aí, lá pelos 15 anos, decidi ler a Bíblia com espírito crítico. Em primeiro lugar, nela não vi praticamente nada das besteiras que os padres pregavam no catecismo. Ou seja, Bíblia é uma coisa. Igreja é outra. Em segundo lugar, concluí que aquele deus cruel, genocida e vingativo não podia existir. Joguei minhas crenças fora e me senti extraordinariamente livre. Viver minha sexualidade sem nenhum sentimento de culpa foi algo muito bom. Jogar ao lixo dogmas estúpidos também. Depois daquela leitura, renasci como ateu. Eu não me tornei ateu lendo obras que defendem o ateísmo. Tornei-me ateu lendo a Bíblia.

O papado de Ratzinger ainda não pode ser julgado, mal começou. Mas começou mal. Essa recente viagem à Turquia foi um desastre. Foi como se a cristandade se entregasse de mãos atadas ao Islã. Bento XVI propôs um diálogo com o Islã. Ora, nenhum diálogo é possível enquanto os muçulmanos não aceitarem alguns pressupostos dos quais o Ocidente não pode abrir mão: democracia, livre manifestação do pensamento, separação entre Estado e Igreja, eleições e direito a voto, imprensa livre, igualdade de direitos entre homem e mulher. Impossível dialogar com brutos.

Martin - Como se deu sua formação intelectual? Como foram os anos na França e como você encara Maio de 68: ilusão ou revolução?

JC - Eu me formei em Filosofia e Direito. Mas antes mesmo de entrar na universidade já lia muito sobre Filosofia. Li muita literatura também. A França, a bem da verdade, não contribuiu muito para minha formação. Eu já estava formado. Pedi uma bolsa para estudar literatura apenas porque queria viver em Paris, nada mais do que isso. Como a condição para viver lá era cumprir um projeto de doutorado, acabei me doutorando em Letras. Mas o que eu queria mesmo era curtir mulheres, vinhos e queijos. Foi o que fiz. Claro que Paris, com sua imprensa, suas bibliotecas, os livros a que tive acesso, tudo isto serviu para aprimorar minha visão de mundo. Mas Paris não modificou esta visão de mundo, apenas a consolidou. Antes de Paris, eu havia vivido um ano na Suécia. O fato de ter conhecido uma sociedade tecnologicamente mais avançada antes de chegar a Paris foi importante, eu não chegava à França com a visão de um latino deslumbrado. Depois da Suécia, a França me pareceu uma sociedade muito desorganizada. Os ônibus, por exemplo, não tinham um horário exato para chegar a seus pontos. Em Estocolmo, eu podia acertar o relógio pela chegada do ônibus.

Os anos de França foram ótimos. Tomei Paris como base e comecei a viajar pelo resto da Europa. Conheci ilhas gregas e Canárias, países socialistas e africanos, conheci o Egito e o Saara, fiz várias viagens a Berlim, cobri festivais de cinema em Berlim, Cannes e Cartago, na Tunísia. Viver em Paris sempre é bom.

Eu não estava lá em 68. Conheci Paris em 71 e vivi lá entre 77 e 81. Mas entendo maio de 68 mais como um fenômeno midiático que como revolução. Trop de sperme, pas de sang, como se dizia na época. A única mudança visível foi, a meu ver, a destruição da Sorbonne como universidade e a criação da Université de Vincennes, a mal afamada Paris 8. Tão mal afamada que quem nela se formava escondia seu título.

Martin - Os clássicos devem necessariamente ser lidos? Em sua visão pessoal, é passo necessário para a formação do educando que ele os leia? O que os clássicos podem trazer de bom para a vida de alguém e como se dá a sua relação com eles?

JC - Depende do que se entende por clássico. Há muita obra tida como clássica que me parece não fazer falta a ninguém. Machado de Assis, por exemplo. Ou Joyce. E mesmo Proust. Sei que estou sendo herético, mas não vejo muito o que se ganha lendo tais autores. Mas se entendes por clássicos a Bíblia, Platão, Swift, Dostoievski, Cervantes, Voltaire, José Hernández, Nietzsche, Pessoa, Orwell, considero-os leitura imprescindível. Há outros clássicos que não considero necessários, mas é sempre interessante ler para rir um pouco. Tomás de Aquino, por exemplo. Não que eu negue o valor do Aquinata. Ele era um grande trabalhador intelectual, tanto que era chamado de Boi Mudo. Sua virtude maior foi compilar definitivamente todo o besteirol do cristianismo. Neste sentido, é divertido ler a Suma Teológica.

Chamamos clássicos os autores cujas obras atravessaram os séculos e merecem até hoje uma reflexão. São tentativas de entender o mundo e nos servem como faróis, como indicativos de rumos. Seria muito difícil — e inútil, irracional — para o homem contemporâneo começar de zero.

Martin - Como você iniciou sua vida de tradutor? Borges dizia que é um mito bobo a idéia de que um livro é intraduzível, no sentido de que ele só deveria ser lido no original. É preciso ler no original?

JC - Ao voltar da Suécia, trouxe um livro belíssimo, um romance de antecipação, Kalocain, de Karin Boye. Traduzi-o um pouco pelo prazer de fazer uma leitura em profundidade, outro tanto para não perder meu sueco. O livro foi aceito por uma editora do Rio, a Cia. Editora Americana. Depois disso, um editora paulista, a Alfa-Ômega, convidou-me para traduzir Crônicas de Bustos Domecq, de Borges e Bioy Casares. Mais tarde, Ernesto Sábato me escolheu como tradutor de suas obras. Traduzi cerca de vinte títulos e cansei. O pagamento é vil. Em verdade, rende algumas viagens, mas isso não é generosidade da editora. A gente tem de se virar. Em virtude de minhas traduções do sueco, ganhei uma viagem à Suécia. Ganhei também uma bolsa na Espanha, que atribuo às minhas traduções do prêmio Nobel espanhol Camilo José Cela. Bem entendido, eu o traduzi antes de ser Nobel.

As traduções são impossíveis, mas necessárias. Claro que é melhor ler uma obra no original. Procuro não ler obras traduzidas de línguas às quais tenho acesso. E acho que um homem medianamente culto, em nossos dias, tem de conhecer necessariamente o inglês, o francês e o espanhol. Ou não vai entender o mundo. As línguas são janelas abertas para outras culturas, e quanto mais janelas abertas tivermos para o exterior, melhor.

Martin - O que você pensa da atual situação cultural brasileira? Há produção de qualidade? Onde isso poderia ser apontado?

JC - Não há grande coisa a salientar. O Brasil tem ficcionistas demais. Escrever ficção é só sentar e dar livre curso à imaginação. Pesquisar, que é bom, é mais trabalhoso. Nossos pesquisadores se limitam a temas nacionais. Não temos um grande historiador, um grande estudioso de religiões, um grande estudioso da Bíblia. Se quisermos entender história universal, passada ou contemporânea, temos de recorrer a bibliografias estrangeiras. Surgiram recentemente nas livrarias biografias excelentes de Mao, Stalin, Lênin. Isto não é tarefa para um brasileirinho. É como se a universidade e a cultura nacionais se debruçassem sobre o próprio umbigo, sem se importar com o que acontece no planetinha.

Não temos filósofos. No Brasil, está na moda chamar de filósofo qualquer professorzinho de filosofia. Ora, professores de filosofia não são filósofos. Filósofo é quem cria uma doutrina original. Desconheço algum pensador brasileiro que tenha criado uma doutrina original. São todos repetidores da história da filosofia. Quase todos os escritores do século passado foram influenciados pelo marxismo. Isto foi fatal para a literatura brasileira.

Martin - Há muitas pessoas apontando uma crise. Mas o homem sempre parece estar numa situação de crise, meio apocalíptica, como se o fim estivesse próximo. Os valores, culturalmente falando, foram rebaixados em nosso tempo?

JC - O homem sempre viveu em crise. Houve uma crise na emersão do cristianismo, houve crise na queda do império romano, Galileu sozinho provocou uma crise na visão cristão de mundo, a última crise que vivemos foi a derrocada do comunismo. Nossa situação é apocalíptica? Só para profetas do apocalipse. Esta profissão é das mais fáceis. Apostar no pior é meia aposta ganha. Por outro lado, para estes profetas, o pior é sempre mais adiante. Enquanto o pior não chega, a profecia se mantém à espera. A humanidade sempre viveu como se o fim estivesse próximo. Há dois mil anos, esta sensação era mais aguda que hoje. Naqueles dias, o apocalipse estava marcado para amanhã. Se os valores foram rebaixados? Difícil responder. Cada época tem seus valores. Morrem uns, nascem outros. A imprensa cria valores, mitos. Cabe ao homem independente fugir a esses valores midiáticos. Não é difícil. Bastar pensar um pouco.

Martin - Quais são os seus autores e livros preferidos e por quê?

JC - Tenho uma biblioteca que terá uns cinco mil exemplares. Nem tudo é trigo nela, há muito joio. Para entender o mundo precisamos ler também muita porcaria. É o que chamo de leitura contra: nos obrigamos a ler certos livros que sabemos serem idiotas. Mas temos de lê-los, para entender o nível de idiotia da humanidade. Assim, boa parte de minha biblioteca tem livros de religião e livros sobre o comunismo. Temos de estudar o inimigo se quisermos combatê-lo.

Sempre que me perguntam por autores preferidos, costumo citar alguns, mais ou menos aleatoriamente. Cá estão. Todo homem necessita de alguma poesia. Há dois poetas que me satisfazem plenamente, posso viver minha toda nutrido por eles: José Hernández e Fernando Pessoa. Hernández escreveu o poema maior da América Latina, Martín Fierro. É poema que leio e releio e não canso de reler. Poucas pessoas o conhecem no Brasil. Pessoa, sabemos quem é.

Entre meus livros de cabeceira, tenho a História das Origens do Cristianismo, de Ernest Renan (sete volumes). Através destes volumes, tenho uma boa idéia das crenças que embasam o Ocidente. Outro de cabeceira é A Cidade Antiga, de Fustel de Coulanges, me dá uma boa idéia dos fundamentos da cidade contemporânea. Ainda nesta linha, gosto de ler A Cidade na História, de Lewis Munford. Gosto de cidades e gosto de entendê-las. Fui um leitor apaixonado de Nietzsche e até hoje gosto de reler Ecce Homo, o último livro que publicou antes de enlouquecer. Este livro resume o homem todo. A propósito de loucos, gostei também de ler Escuta, Zé Ninguém, do Wilhelm Reich.

Sou fascinado pelas Viagens de Gulliver, a meu ver o livro mais importante do século XVIII. Atualíssimo. Já fui processado por cita-lo. E considero 1984, do Orwell, a obra mais emblemática do século XX. Desmonta toda a semântica do comunismo. Não posso deixar de lado o Quixote, que traduz todo um país que adoro, a Espanha. Além disso, é uma viagem no tempo, me transporta a uma Espanha de 400 anos atrás.

Gostei muito de ler Giovanni Papini, um grande escritor italiano do qual hoje ninguém lembra. Adoro os livros de crônicas do Pitigrilli. Gostei de Dostoievski, embora hoje não tenha muita paciência para relê-lo. Atualmente, acabo de ler, e com muito prazer, as biografias de Stalin, de Simon Sebag Montefiore, e de Mao, de Jung Chang. Ainda recentemente, li — e com muito vagar para melhor degustá-lo — Histoire de l'athéisme, do historiador francês Georges Minois. É o que o título diz, uma história do ateísmo, dos gregos para cá. Se as histórias das religiões são muitas, as do ateísmo são raras. Fascinante.

Li também há pouco uma discussão sobre a gênese da Europa, do medievalista Jacques le Goff, L'Europe est-elle née au Moyen-Âge? O ensaio discute não só o surgimento da Europa como seu próprio conceito. Muito oportuno nestes dias em que a Comunidade Européia inchou para 25 países. Da última viagem a Roma, trouxe Medioevo sul naso. Occhiali, bottoni, e altri invenzione medievali, de Chiara Frugoni. Costumamos ver a Idade Média como um período de trevas, mas houve também muita criatividade naqueles dias. A autora se detém sobre a revolução do vidro, essa revolução silenciosa e sem sangue que iluminou as residências e nos aproximou tanto do infinitamente pequeno, como do infinitamente grande. Que permite aos míopes ler, o que muitas esquecemos. Sem esse achado que hoje nos é tão banal, não teríamos, por exemplo, aquelas magníficas fotos dos anéis de Saturno que surgiram recentemente na imprensa. E por aí vai.

Mas algo aconteceu comigo nos últimos anos. Já deve fazer uns bons vinte anos que não leio ficções. Mundos inventados já não me interessam muito. Claro, fico com esses clássicos, tipo Cervantes, Swift, Orwell, que interpretaram com muita competência as sociedades de suas épocas. Mas os ficcionistas contemporâneos não me apetecem. Não conseguiram sequer prever a queda do Muro de Berlim. Tenho preferido ensaios, nos últimos anos.

Martin - Harold Bloom escreveu um livro chamado Como e por que ler?. Remeto-lhe a questão do título.

JC - Fora da leitura não há salvação.

Protosophos, 20 dezembro 2006