¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, janeiro 27, 2012
 
FÁBRICA DE RACISMO


Um artigo de Rosa Montero, colunista de El País, publicado em maio de 2005, sabe-se lá por que internéticas razões, ressuscitou com força na Web. Terça-feira passada constava em primeiro lugar na lista “Lo más visto” em elpais.com

Vamos ao caso, conforme relata a colunista. Pelo que me lembre, a imprensa brasileira não o comentou. Em um comedor universitário na Alemanha, uma estudante pega uma bandeja de comida do selfservice e senta-se em uma mesa. Nota que esqueceu os talheres e vai buscá-los. Ao voltar, vê com surpresa que um jovem negro está comendo em sua bandeja. Duvida um momento, mas por fim, condescendente, senta-se para dividir sua comida com o intruso, que se mostra amigável e sorridente. Quando terminam de comer, o rapaz vai embora e, ao levantar-se, ela se dá conta de que sua bandeja está intacta, junto a seu abrigo, na mesa ao lado.

Comovente, não? A alemã racista acha que o negro apoderou-se de sua bandeja. Em um laivo de condescendência, consente em reparti-la com o negro. O bom negrinho nada objeta, apesar de a bandeja ser sua. A arrogância e o racismo europeus confrontam-se com a humildade e a generosidade africanas. Dá vontade de chorar.

Ao final do artigo, Rosa Montero alertava: “Dedico esta historia deliciosa, que además es auténtica...”. Deliciosa, pode ser. Mas não era autêntica. Mais ainda, era plágio de ficções. Constava do livro Galletitas, de Jorge Bucay. Outros situam sua origem em uma narrativa do escritor britânico Douglas Adams, publicado no final dos 70. Ou ainda a um conto juvenil da escritora Federica de Cesco – adorável suissesse que tive a honra de conhecer em meus dias de Estocolmo – intitulado Spaghetti für zwei.

“A lenda teve muitos avatares” – diz Rosa Montero, que agora reconhece seu equívoco -. “É um desses relatos fascinantes que, por alguma misteriosa razão que tem a ver com o inconsciente coletivo, tem uma grande capacidade de sobreviver”.

Essas histórias edificantes, por demais óbvias, jamais me convenceram. Como em toda história edificante, sempre há um detalhe que não bate. É de supor-se que ambos os protagonistas não tivessem as mesmas preferências alimentares. Será que a alemã não notou que a comida que dividia com o africano não era a mesma que havia escolhido?

Por que fascinante? Porque acusa a Alemanha de racismo? Qual misteriosa razão? Não há razão misteriosa alguma. É apenas o desejo das esquerdas que detestam a Europa de acusar o branco europeu de racismo.

Em meu ensaio Como ler jornais (2006), relatei vários desses casos. Como sempre é bom refrescar a memória das gentes, vou retomar alguns. Apenas alguns.

Um dos casos mais perturbadores de manipulação dos fatos ocorreu no verão europeu de 93, na Holanda. A reunião de pauta da Folha de S. Paulo foi excitada naquele dia. Uma menina marroquina, Naima Quaghmiri, nove anos, morrera ao cair em um lago em Roterdã. Duzentas pessoas teriam assistido seu afogamento, sem prestar-lhe socorro. O pauteiro brandia o telex com fúria. A idéia era produzir uma manchete como

RACISTAS HOLANDESES DEIXAM MORRER FILHA DE IMIGRANTES

A notícia era absurda. Duas centenas de pessoas não observam, passivamente, uma criança se afogando. O lago, uma espécie de açude, como mostrava a foto, era raso. No meio dele, havia um bombeiro com água pela cintura. Dois dias depois, novo despacho retificava o anterior. Não havia uma menina se afogando e duzentos holandeses assistindo. Naima se afogara horas antes. Policiais e bombeiros haviam pedido aos veranistas que formassem um semicírculo, de mãos dadas, e percorressem o lago em busca do cadáver. Os veranistas se recusaram.

Perguntei ao editor se a reportagem seria retificada. "Não precisa" — disse — “Amanhã ninguém mais lembra disso”. Mas jornalismo é o registro da história, é nos arquivos do passado que os pesquisadores do alegado amanhã buscam dados para seus ensaios, aleguei. "O que de fato acontece" — disse o editor — "só vamos saber meses depois. Jornalismo é assim mesmo".

Se não há agressão alguma, cria-se pelo menos atos criminosos por omissão. Foi o que aconteceu em Sebnitz, na Alemanha, em dezembro de 2000. O Estadão titulou com gosto:

MORTE DE CRIANÇA POR NEONAZISTAS ENVERGONHA ALEMANHA

Vamos à notícia:

Berlim — No dia seguinte à revelação do assassinato do garoto Joseph, de seis anos, do qual um grupo neonazista é o principal suspeito, surgiram vozes em toda a Alemanha pedindo justiça. Enquanto isso, no local do crime, o povoado de Sebnitz, na Saxônia, vivem-se momentos de vergonha após a cumplicidade silenciosa de seus habitantes. O jornal Bild denunciou a história de Joseph, filho de pai iraquiano e mãe alemã, que, perante a indiferença de 300 banhistas, foi espancado, torturado e afogado por um grupo de neonazistas em uma piscina pública. Na época, o caso foi encerrado como um acidente normal e, graças apenas à tenacidade da mãe da criança, a promotoria reabriu agora o caso. A história da morte do menino ocupou a capa de todos os principais jornais do país e o Bild reproduziu, também na primeira página, uma fotografia do garoto morto, junto com a mãe.

Esta é a notícia. Mesmo fractal do episódio em Roterdã: filho de imigrante se afogando, uma multidão de banhistas assistindo. Se a notícia sai no ano 2000, é bom lembrar que o fato teria ocorrido em 1997. Detalhes novos: criança espancada, torturada e assassinada. Os banhistas, desta vez são trezentos. Este tipo de notícia tende a aumentar nos próximos anos. É fácil acusar uma multidão. Como ninguém é acusado individualmente, ninguém reclama. Mais difícil é acusar uma ou duas pessoas. Pode dar processo.

Vamos aos fatos, em tudo semelhantes ao episódio de Roterdã. No dia 13 de junho de 1997, uma criança de 6 anos, Joseph Abdulla, morrera afogada numa piscina pública cheia de gente. Quando bombeiros e médicos chegaram, era tarde demais: o corpo boiava há dez minutos sem vida. A polícia fez um inquérito e concluiu que tudo foi um lamentável acidente. O caso foi arquivado e esquecido. Ocorre que a mãe, a farmacêutica Renate Kantelberg-Abdulla, se convenceu de que Joseph fora morto por neonazis por ser filho de um iraquiano. Os assassinos tê-lo-iam previamente drogado e depois lançado à água.

Para comprovar esta tese, foi contratado um dos advogados mais conhecido da Alemanha, Rolf Bossi. Renate conseguiu também o testemunho de 23 pessoas, adultos e crianças, cujas versões levavam a pensar que poderia não se ter tratado de um acidente. O Bild do dia 23 de novembro recoseu a matéria com o título Neonazis afogam criança. Sebnitz passou para a primeira página da imprensa internacional e foi invadida pela televisão. Kurt Biedenkopf, o ministro presidente da Saxônia, foi a Sebnitz participar numa cerimônia religiosa em memória da «vítima». Edmund Stoiber, ministro presidente da Baviera, se disse horrorizado. «Não apetece viver num país onde uma criança de seis anos é assassinada por criminosos, por causa de motivos políticos, e onde ninguém mexe um dedo para impedir o crime», escreveu o jornal Tagesspiegel, de Berlim.

Soube-se depois que Renate dera dinheiro às 23 testemunhas para influenciar a sua versão. Uma das crianças interrogadas confessou ter dito “aquilo que a senhora queria ouvir, para ela me deixar voltar para casa». Tampouco foram confirmadas as ligações com grupos neonazis. O próprio Bossi, advogado de Renate, escrevera uma carta à sua cliente, duvidando da tese de uma conspiração racista e dizendo-lhe que ela «insistia em travar uma luta contra o resto do mundo».

E muitos outros casos compilei. Como a luta de classes está fora de moda, o racismo tornou-se o novo motor da história. Multidões serão novamente denunciadas por crimes que não foram cometidos nem podem ser provados. Mesmo desmentidos, comunidades e países inteiros herdarão a pecha de racistas. O alvo é a Europa. Como o fantasma do comunismo não conseguiu dobrá-la, como previa Marx já no Manifesto, suas viúvas brandem um outro, o da luta racial.

É a fábrica de racismo funcionando a todo vapor.