¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, janeiro 11, 2012
 
IMORTAL HOMEM DO PAMPA
DESCONHECE ATÉ A BÍBLIA



Laís Legg, excelente interlocutora, me escreve:

- Oi, Janer: mesmo que digam que estou pregando no deserto, resolvi começar uma cruzada contra o assassinato do vernáculo. Acabo de ler, no Terra, "fulano e ciclano". Ora, "ciclano" é um termo usado na química (são os hidrocarbonetos cíclicos). Parece que os atuais jornalistas nunca ouviram falar do termo "sicrano", que horror.

É luta perdida, Laís. Hoje, há jornalistas que já não conseguem distinguir entre mau e mal. Já tive alunas de Letras, em final de curso, que escreviam “eu poço”. Ainda há pouco, eu comentava a inscrição de uma cruz em uma igreja do interior de Santa Catarina: “sauva tua auma”. São passados os tempos em que os padres falavam inclusive latim. A História é uma eterna luta entre alfabetizados e analfabetos, dizia Nestor de Hollanda, de saudosa memória. Segundo o autor, cá e lá os alfabetizados teriam ganho algumas batalhas: alguns já estavam infiltrados no Exército.

- Puxa, Janer, se alguém da tua estatura intelectual joga a toalha, a causa está perdida. Penso que, com um pitaco aqui e outro acolá, talvez a coisa melhore. Será que não existe quem queira se aprimorar? Será que a nova geração pensa "sou como sou, e daí?". Não querem trilhar a estrada do conhecimento e ir acrescentando, aos poucos, novos aprendizados?

Em maio passado, Laís, provocou celeuma o livro Por uma Vida Melhor, adotado pelo Ministério da Educação, que considera ser válido o uso da língua popular, ainda que com seus erros gramaticais. Dizer "nós pega o peixe" ou "os menino pega o peixe", seria aceitável. Para quem não tem escola, sem dúvida é aceitável. Mas a escola existe para ensinar os alunos a falar corretamente. Se não ensina, não tem porque existir. Quando um livro, adotado pelo MEC, abre tal exceção, não vejo muita esperança.

Que um pessoa inculta cometa tais erros, até que se entende. Bem ou mal, esta pessoa passa seu recado. Se alguém diz “vendo dois peixe por dez real”, eu sei o que ela quer dizer. O grave é quando profissionais que tem a língua como instrumento de trabalho escrevem tais barbaridades. Quando a profissão não era regulamentada, jornalista era quem sabia escrever. Hoje, é quem tem diploma. O que nada tem a ver com saber escrever.

Ano passado, me escrevia a leitora Solange Maria Mendonça Campos:

- Prezado Janer, eu dava uma aula, no curso médico de graduação, para uma turma do 5º. ano. Ou seja, os senhores/as ali presentes estavam quase formados. O tema era "Depressão: sintomas e sinais universais na clinica médica básica". Arrisquei: "a insônia é o arauto da depressão" (feliz expressão de um grande psiquiatra francês, daqueles da velha cepa, que quase moravam dentro do hospital).

- Mal-estar na classe. Repeti, e constatei pela perplexidade dos rostos à minha frente, que ninguém sabia o que era arauto. Expliquei quem era em outros tempos, e sua função social então. Alguns entenderam, e fizeram a associação óbvia, a maioria não. Então desenhei no quadro (acho que aí em SP diz-se lousa?) um daqueles arautos de desenho animado de Disney, com plumas no chapéu, corneta com aquela bandeira, etc. Aí eles entenderam quem era o arauto, mas eu ainda tive de explicar que assim como o arauto fazia, tocando a corneta, a insônia vinha anunciar, etc. Foi neste dia que comecei a pensar em não dar mais aula.

Decorrências da falta de leitura, Solange, da cultura televisiva. Vi isto de perto em meus dias de redação nos grandes jornais. Já contei mas vou contar de novo, pois é história que merece ser repetida ad aeternum. Há uma tendência, entre os jornalistas – particularmente os da Folha de São Paulo – de nada escrever que um leitor mediano não entenda. Se a palavra é inevitável, lá vem explicação. Sempre que você encontrar a palavra latrocínio, o redator abre parênteses e explica: roubo com morte. Como se precisasse explicar o que é latrocínio.

A partir daí, decorre uma conseqüência lógica. Se o jornalista desconhece o significado de uma palavra, é óbvio que o reles leitor também a desconhece. E o jornalista, pretendendo ser didático, prefere evitá-la. Transcrevo minhas aventuras nos dias de Folha, que estão em meu livro Como ler jornais, editado em 2006.

Certo dia me caiu nas mãos um TL (texto-legenda) para titular. Na foto, uma mulher de mãos postas e cabeça inclinada manifestava sua adoração por algo ou alguém. Nem hesitei:

EM SINAL DE PREITO

Mal o texto chegou em sua tela, o editor gritou de sua baia:

— Preito? O que é isso?

Juntei minhas mãos, inclinei a cabeça e disse:

— Preito é isto.
— Ah, mas então deve ser uma palavra muito antiga.

De fato, era bem mais antiga que eu. Como aliás a maioria das palavras que eu ou você usamos. Para aquele menino, formado na reputadíssima ECA, palavra que ele não conhecia certamente o leitor também não a conhecia. Os leitores do jornal eram nivelados pelo padrão do que ele ignorava.

Quem passou por jornais nas últimas décadas, terá dezenas destas histórias para contar. No dia 03 de outubro de 2001, a Folha superou todos seus feitos. A entrevista com Fernando Henrique Cardoso versava sobre o abate de aviões clandestinos sobre o território nacional. “Precisamos fazer um esforço grande para controlar o terrorismo, que é um inimigo suez” — assim redigiu a repórter a declaração do presidente.

A moça, que desconhecia o adjetivo soez, escreveu como pensou ter ouvido e resolveu esclarecer o leitor, que talvez não soubesse o que significava suez: "FHC se referia aos combatentes egípcios que lutaram contra os israelenses na região de Suez, em 1973, e atacavam seus oponentes por meio de túneis subterrâneos abandonados, de surpresa: ninguém sabe de onde vem". Explicação mais que oportuna, já que nem mesmo eu saberia dizer o que significa suez como adjetivo.

Ora, diria o jovem editor, o presidente se permite tais palavras porque é um erudito. Acontece que não se exige erudição de ninguém para falar em soez. As gerações novas, hostis à leitura e viciadas pelo parco vocabulário televisivo, não mais conhecem palavras elementares do vernáculo e ainda se julgam no dever de elucidar para o leitor vocábulos de cujo significado apenas suspeitam. Com este material humano, que sequer conhece a própria língua, faz-se jornalismo. Pois jornalismo, hoje, só pode exercer quem faz curso de jornalismo.

Melhor mesmo, só a história dos perdigotos, já incluída no ror dos clássicos da Folha. A notícia era sobre a epidemia de uma gripe, que se disseminava por perdigotos. O repórter, ciente de sua ignorância, fez o que deveria fazer: consultou o dicionário. Só que ficou na primeira acepção da palavra. Os leitores foram então informados que a gripe era transmitida por filhotes de perdiz. O cidadão urbano foi tranqüilizado. Como nas urbes não existem perdizes, muitos menos filhotes das ditas, não havia porque temer a gripe.

Ainda há pouco, a mesma Folha relatou diálogo significativo entre dois deputados, a respeito do lançamento de Sócrates e Thomas More, desse intelectual de escol chamado Gabriel Chalita:

- É ágil esse Chalita. Mal o cara morreu, ele lança um livro sobre o assunto.
- Só não sei em que time joga o Thomas More – ajuntou a outra sumidade.

Difícil cobrar conhecimento de jovens jornalistas, minha cara Laís, quando a incultura invade até mesmo a Academia Brasileira de Letras, venerável sodalício que se pretende um repositório da cultura pátria. Carlos Nejar, gaúcho de asfalto nascido em Porto Alegre, que gosta de anunciar-se como homem do pampa – já deve ter visto alguma coxilha na televisão – foi indicado recentemente por uma Associação Brasileira de Filosofia, ou coisa que o valha, para o Nobel da Literatura. (Cá entre nós, sou mais o Paulo Coelho). Mas antes de chegar ao cerne da questão, conto mais uma historinha.

Anos 70. Eu confraternizava com uma grácil adolescente, menina que curtia Mickey e Pato Donald, mas tinha outras virtudes que não as intelectuais. Eu lia uma Zero Hora, onde havia uma lista dos dez livros mais vendidos em Porto Alegre. Curioso por saber que tipo de literatura, além dos quadrinhos, agradaria àquela adorável cabecinha oca, perguntei-lhe qual título mais a atraía. Ela não hesitou um segundo: Casa dos Arrepios, de Carlos Nejar.

O redator da Zero, como o imortal do pampa, certamente jamais vira arreios de perto. E tascou arrepios. Por uma letrinha, Nejar teve ter perdido uma parcela considerável de leitores.

Mas vamos ao caso. Em entrevista à revista Macabéa, diz o novel nobelizável:

- Tudo depende do espírito que avança nas épocas, apesar de muita repetição e retorno às essas fontes pela dita pós-modernidade. Observa Heráclito – “não há nada de novo sob o sol”, mas tudo se faz novo se sonharmos.

Pelo jeito, o imortal homem do pampa jamais leu a Bíblia. E nunca ouviu falar do Kohelet.