¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

domingo, fevereiro 12, 2012
 
AOS MISÓGINOS VULTURINOS


Comentando a posição pró-aborto da nova ministra das Mulheres, Eleonora Menicucci, o articulista Hélio Schwartsman, na edição de hoje da Folha de São Paulo, faz uma pertinente análise da questão. Seu artigo certamente irritará muitos católicos.

Schwartsman considera que o argumento central dos antiabortistas é o de que a vida tem início na concepção e deve desde então ser protegida. “Para essa posição tornar-se coerente, é necessário introduzir um dogma de fé: o homem é composto de corpo e alma. E a Igreja Católica inclina-se a afirmar que esta é instilada no novo ser no momento da concepção. Sem isso, a vida humana não seria diferente da de um animal e o instante da fusão dos gametas não teria nada de especial”.

O articulista empunha um argumento para o qual não há resposta:

“Na verdade, é difícil conciliar a noção de alma com o que sabemos de biologia. Um bom exemplo é o fenômeno da gemelaridade. Gêmeos monozigóticos (idênticos) se formam entre um e 14 dias depois da fertilização, quando o embrião sofre um desenvolvimento anormal dando lugar a dois ou mais indivíduos com o mesmo material genético.

“A alma, é claro, já estava lá. Cabem, assim, algumas perguntas. Ela também se divide, ou outras almas surgem para animar os demais irmãos? De onde elas vêm? Quem fica com a "original"? E, se gêmeos partilham a mesma alma, como fica o livre-arbítrio? Se um irmão peca, leva o outro ao inferno? Ou a alma boa prevalece sobre a má, carregando para o paraíso uma ovelha negra?”

O que me lembra um raro filme dos anos 30, cujo título e autor me escapam no momento. A ação toda ocorre num circo. Naquela época, os seres humanos disformes eram apresentados em shows públicos. Entre homem-sapo (sem membros), anões e mulheres barbudas, há uma dupla de siamesas. Uma delas casa com um dos personagens. Acontece que a outra é alcoólatra. E quando bebe, acaba embebedando sua sócia de corpo. É o paradoxo que propõe Schwartsman. Ocorre que os teólogos não tinham como imaginar que futuros avanços da biologia poderiam demolir seus dogmas.

Confesso que não entendo o escândalo dos católicos ante o aborto. Para começar, ao condená-lo, estão contestando a doutrina de dois ilustres doutores da Igreja, nada menos que São Tomás de Aquino e Santo Agostinho, que eram favoráveis ao aborto.

Segundo o aquinata, só haveria aborto pecaminoso quando o feto tivesse alma humana o que só aconteceria depois de o feto ter uma forma humana reconhecível. Para o Doutor Angélico, como o chamam os católicos, a chegada da alma ao corpo só ocorre no 40º dia de gravidez. Agostinho tem argumentos semelhantes. A posição de Aquino sobre o assunto foi aceita pela igreja no Concílio de Viena, em 1312. Isso sem falar que foi só em pleno século XIX, em 1869 mais precisamente, que o Papa Pio IX declarou que o aborto constitui um pecado em qualquer situação e em qualquer momento que se realize.

Isso sem falar que, se alma é matéria de dogma, aborto não é. Não existe dogma algum a respeito da questão. Façamos as contas. Durante 19 séculos, a Igreja nada objetou ao aborto. Aceitou inclusive a posição do aquinata. A posição contrária ao aborto tem apenas século e meio de existência.

Não tenho praticamente nada de novo a dizer sobre o assunto. Só posso repetir o que venho afirmando há mais de década. Quando reclamo desta mania dos católicos de pretender legislar para o universo todo, não falta quem me chame de intolerante. Se os católicos acham que aborto é crime, que não abortem, ora bolas. Os defensores do aborto falam em descriminalizar o aborto no país. Santa ingenuidade! O aborto está há muito descriminalizado. Como também a droga, antes que me esqueça.

O Ministério da Saúde considera que um milhão de abortos ilegais sejam feitos anualmente no Brasil, apesar da proibição no Código Penal e da forte oposição da Igreja. Ora, se um milhão de abortos são feitos anualmente em um país, é porque a prática já faz parte dos usos e costumes nacionais. Como a droga.

Os Testemunhas de Jeová, por exemplo, são contra as transfusões sanguíneas. É uma atitude insana que pode levá-los à morte. Mas pelo menos nunca pretenderam impor esta proibição à sociedade. Se preferem morrer por falta de transfusão, que tenham boa viagem.

Já propus, em crônicas passadas, que os católicos – e só os católicos – fossem punidos com todo o rigor da lei quando praticassem aborto. Não faltou quem se escandalizasse: “horror, leis especiais para determinados grupos”. Ora, o Brasil desde há muito tem leis especiais para determinados cidadãos. Índio pode matar, estuprar, fazer reféns... e tudo bem. Os sem-terra podem invadir fazendas, próprios da União, destruir laboratórios científicos e ainda têm a perspectiva de contar com aposentadoria por tais serviços. Um negro vale por dois brancos nos vestibulares.

Por que não uma legislação especial para católicos? Se acham que aborto é crime, prisão firme para o católico que aborte. Que estes misóginos vulturinos deixem em paz as pessoas que querem apenas ter os mesmos direitos dos cidadãos dos países civilizados do Ocidente.

Em tempo - O leitor Thiago Silva me refresca a memória: Meu caro, acabo de ler seu mais recente texto e tenho quase certeza de que o filme que você cita se chama Freaks (traduzido como Monstros), do diretor Tod Browning, do ano de 1932. Já o assisti há alguns anos e, apesar de não lembrar da cena mencionada, a descrição dos tipos me parece ser a do mesmo filme. Aí vai o link dele no imdb, se desejar confirmar se é o mesmo: http://www.imdb.com/title/tt0022913/