¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, fevereiro 15, 2012
 
AYAAN HIRSI ALI NO
PAÍS DAS MARAVILHAS



Já comentei, há mais de cinco anos, o livro Infiel (Companhia das Letras, 2007), da escritora somali Ayaan Hirsi Ali. Refugiada na Holanda, foi deputada no Parlamento holandês e hoje vive nos Estados Unidos. Ayaan vai longe em suas denúncias.

Que a maioria das mulheres muçulmanas sofre a excisão do clitóris quando criança, disto há muito se sabe. A própria Aayan foi submetida à mutilação aos cinco anos. Como no Islã as moças sem hímen são consideradas objetos usados, muitas delas, ao perder a virgindade, buscam a Europa para fazer cirurgias reparatórias. O que não se sabia é que, até pouco tempo, em respeito ao famigerado multiculturalismo, as imigrantes muçulmanas na Holanda era reembolsadas pela seguridade social pela restauração de hímen. Aliás, em nenhum país europeu falta médico que se habilite à prática infame da clitorectomia. Na Itália, chegou-se a propor uma solução intermediária: um pequeno corte simbólico, que manteria intacto o hímen, mas salvaria as sábias tradições islâmicas.

Neste livro, além de memórias da infância e adolescência na Somália, mais seu primeiro contato com o Ocidente, Hirsi Ali narra o episódio da ablação de seu clitóris:

“Fui a seguinte. Fazendo um gesto amplo, vovó disse: “Quando esse kintir comprido for retirado, você e sua irmã ficarão puras”. Pelas palavras e gestos dela, concluí que aquele abominável kintir, o meu clitóris, acabaria crescendo tanto que um dia começaria a balançar entre minhas pernas. Ela agarrou meu tronco do mesmo modo que tinha prendido Mahad. Duas outras mulheres abriram as minhas pernas. O homem, que provavelmente era um “circuncidador” itinerante tradicional do clã dos ferreiros, pegou a tesoura. Com a outra mão, segurou o lugar entre minhas pernas e começou a puxá-lo e espremê-lo, como quando vovó ordenhava uma cabra. “Aí”, disse uma das mulheres, “aí está o kintir”.

“Então o homem aproximou a tesoura e começou a cortar os meus pequenos lábios e o meu clitóris. Ouvi o barulho, feito o de um açougueiro ao tirar gordura de um pedaço de carne. Uma dor aguda se espalhou no meu sexo, uma dor indescritível, e soltei um berro. Então veio a sutura, a agulha comprida, rombuda, a transpassar canhestramente os meus grandes lábios ensangüentados, os meus gritos desesperados de protesto, as palavras de conforto e encorajamento de vovó: “É só uma vez na vida, Ayaan. Seja corajosa, está quase acabando”. Ao terminar a costura, o homem cortou a linha com os dentes”.

Estou lendo agora Nomade - De l'Islam à l'Ocident,un itinéraire personnel et politique (Robert Laffont, 2005), a continuação de suas peregrinações no Ocidente, editado na França. Deve existir um ghostwriter por trás do livro, pois é difícil conceber o cosmopolitismo e o domínio de conceitos ocidentais de uma moça de apenas 43 anos, que saiu de uma tribo somali em sua adolescência. Ayaan está agora nos Estados Unidos. Por ter mentido à imigração holandesa para receber asilo – alegou razões políticas -, foi destituída da cidadania holandesa e teve de abandonar o Parlamento e o país. A somali não nega ter mentido, mas considera que esta é a maneira pela qual a maioria dos africanos consegue chegar à Europa.

Em Infiel, Ayaan se espantava com o fato de um ônibus chegar “exatamente na hora marcada, catorze horas e trinta e sete minutos, pontualmente. Em Bonn, os ônibus também eram assim, e aquela misteriosa pontualidade me parecia esquisitíssima. Como era possível prever que o ônibus chegaria precisamente às catorze e trinta e sete? Acaso eles também controlavam as regras do tempo?”

Em Nomade, a somali se defronta com outras misteriosas instituições do Ocidente, desde o tíquete de espera de uma fila ao crédito e o cartão de crédito.

“Eu estava cativada pela engenhosidade do sistema. As pessoas não tinham de fazer a fila como éramos obrigados na África; eles não tinham que se enfiar, empurrar os outros ou se comportar de maneira agressiva para defender seu lugar na fila de espera. Podia-se sentar, e durante este tempo seu tíquete de alguma maneira fazia a fila por você”.

Quando uma funcionária da assistência social lhe oferece um empréstimo para mobiliar seu apartamento, Ayaan toma contato com três conceitos desconhecidos: mobiliar, seu e apartamento. Quando entende que se trata de um empréstimo, fica perturbada com a idéia de ficar devendo a uma infiel. “Isso significaria certamente que eu seria obrigada a pagar juros, o que é anti-islâmico e malsão. Devia ser uma armadilha dos infiéis”.

Ao fazer uma conta em banco, algo que jamais tivera idéia do que fosse, foi-lhe perguntado se queria depositar algum dinheiro na conta. Aayan propôs dez florins que tinha em um bolso da manga. “Ah, não, isso você pode guardar”. Recebeu um pequeno cartão brilhante, que tinha por nome Giro. Servia apenas para lembrar seu número de conta, mas ela o achou maravilhoso. Mais tarde, recebeu um cartão de débito. Para seu espanto, descobriu que podia retirar dinheiro do distribuidor, na rua, não importava quando, desde que tivesse vontade.

Os problemas surgiram quando Ayaan e sua irmã descobriram que, graças àquele cartãozinho mágico, podiam comprar o que bem entendessem sem pagar dinheiro algum pela mercadoria. E forraram seu apartamento com cortinas, tapetes e móveis caros, afinal não precisava pagar. “Eu vivia no mundo de Alice no país das maravilhas, atrás do espelho, munida de um cartão bancário e de um apartamento".

O mesmo aconteceu com outro africano ilustre, Idi Amin Dada, ditador de Uganda, se é que alguém ainda lembra dele. Recebeu dos ingleses um cartão de crédito e achou uma maravilha comprar carros, televisores, móveis sem nada pagar. Até que um dia chegou a conta. Os ingleses tomaram então uma providência. O cartão tinha de ser avalizado com a assinatura do adido militar britânico.

“Praticamente todos os imigrantes que eu conhecia – diz Ayaan – acumulavam dívidas demolidoras. Eles pediam uma carta de crédito, esses pequenos retângulos de plástico mágicos que lhe permitem, simplesmente em troca de uma assinatura sobre um pedacinho de papel, sair de qualquer loja com aquilo que você tem vontade”.

Como seria de esperar, um dia a conta chegou para Ayaan. “Uma carta me informava que eu estava endividada em quatro mil florins suplementares. Quatro meses mais tarde, Yasmine desapareceu. Pouco tempo depois, recebi uma fatura da companhia telefônica: ela havia gasto 2.500 florins em comunicações”.

O remédio foi apelar a holandeses amigos, que a ajudaram a pedir planos de pagamento a longo prazo. Ayaan Hirsi Ali aprendeu então a gerir esse ato banal que toda criança domina no Ocidente: comprar.