¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, fevereiro 06, 2012
 
O NOVO CONFLITO EUROPEU


Quando fui morar na Suécia, em 71, aqui no Brasil não havia ainda o atual culto aos cães. Pela primeira vez em minha vida vi uma petshop. Como também produtos especiais para a alimentação canina e mesmo livros de culinária. Para quem saía da Porto Alegre dos anos 70, aquilo tudo parecia bizarrice de Primeiro Mundo.

Vivi em Paris de 77 a 81. Se houve algo que me chocou na França, foi o status do qual gozavam os cães. Cheguei até a mesmo a fazer um dossiê sobre o assunto, que deveria ter uns bons quatro ou cinco quilos. Uma ínfima parte desse dossiê está transcrita em Ponche Verde.

Do Le Monde, por exemplo, reproduzi uma reportagem sobre uma psicanalista de cães. A moça tinha seis anos de especialização na Inglaterra - onde a psicanálise canina está um século à frente em relação à França, dizia o jornal - e falava dos traumas que poderiam acometer os animaizinhos. Um dos graves problemas do cão parisiense era a crise de identidade, de tanto andar entre humanos o cão acabava esquecendo que era um cão, assim era bom que de vez em quando ele saísse com seus semelhantes. Um outro problema, e este dos mais graves, era o fato de que, sendo o cão muito sensível, seus problemas psíquicos muitas vezes não decorriam de seu próprio psiquismo, mas dos problemas vividos pelos proprietários. Se havia atritos no casal, estes eram imediatamente intuídos pelo cão, de modo que a psicanalista se via forçada a sugerir ao casal uma boa análise, pelo menos em nome da saúde psíquica do cão.

Mas o recorte que mais me impressionou na época foi sobre o direito de visita a cães. Um marido, em instância de divórcio em Cretéil, Val-de-Marne, obteve de um juiz de paz um direito de visita a seu cãozinho, já que a mulher havia ficado com a guarda do animal. O casal só se entendia em dois pontos: a ruptura e a vontade de ver regularmente o bichinho. O juiz, após ter oficialmente constatado que havia convergência de pontos de vista por parte do marido e da mulher a respeito do animal, deu ao marido o direito de visitar seu cachorro dois fins-de-semana por mês e de guardá-lo durante boa parte das férias.

Para mim, latino, era como se estivesse lendo alguma ficção de Swift ou Kafka. Nunca entendi - e até hoje não entendo - como pode um casal mobilizar a máquina judiciária para chegar a um acordo tão banal.

Entre os livros que trouxe da França, está um Guide du Chien en Vacances, que mapeia a rede hoteleira destinada aos cães, com hotéis divididos em um, dois e três ossos, sendo que nesta última categoria os cuscos eram postos à mesa com guardanapos e servidos, na sobremesa, com crêpes au Grand Marnier. Trouxe também o Recettes pour Chiens et Chats, best-seller que em seu prefácio oferece às donas-de-casa a alternativa de, em vez de utilizar enlatados, cozinhar para o prazer de seus fiéis companheiros. O livro dá uma série de receitas à base de carnes e peixes, mais manteigas caninas, para animais carnívoros ou vegetarianos, mais bebidas e molhos, tudo aquilo como entrada para depois sugerir pratos de resistência, onde se prevê também um regime sem ossos, mais bolos e doces, mais cosméticos e remédios, onde se especifica desde pastas dentifrícias com mel e óleos de massagem pós-banho.

Visitei também Asnières, um dos dois cemitérios para cães de Paris. Visitei-o, propositadamente, num dia de Finados. Pequenas tumbas e mausoléus solenes, com toda a árvore genealógica do animal ali sepultada, de bisavô e avô a neto. Epitáfios ora ternos, ora céticos: “Traído pelos humanos, sim. Pelos cães, jamais”. Todas as tumbas floridas, madames limpando o chão em volta ao túmulo.

O melhor da visita ocorreu antes da chegada. Como não sabia bem o caminho do cemitério, me informei com duas velhotas que caminhavam à minha frente. C’est juste en face, Monsieur, pequena que não podemos acompanhá-lo, Monsieur é jovem. Vai daí que, ao sair do cemitério, reencontrei as duas velhotas. Limpando a grama na tumba do Pipo. Que havia morrido, se bem me lembro, em 1927. Haja fidelidade.

Vi piores, na França. Em meu dossiê veio também um outro livrinho, intitulado L’Animal, l’homme et Dieu, de Michel Damien (Paris, Editions du Cerf, 216p., 45 F na época). Ocorre, diz o autor, que se escreva sobre o animal para situá-lo em relação ao homem, mas é muito raro que os cristãos ultrapassem a etapa da poesia franciscana para chegar a uma espécie de teologia da natureza animal.

LE CHRIST EST MORT AUSSI POUR LES CHIENS

Assim titulou o Le Monde sua reportagem sobre o livro de Damien. "A solidariedade do homem com o animal não é somente biológica, natural, ela é ontológica, transcendental, evangélica. O Cristo morreu também pelos cães. A Igreja Católica infelizmente está ausente deste debate. Os animais não receberam nenhum status de sua parte. No entanto, se o animal não tem a noção de Deus, ele tem por outro lado aquela do homem, que foi feito à imagem de Deus. (...) Os cães nos esperam no caminho de Cristo. Eles são nossos próximos. Seu sofrimento misterioso é uma participação das Beatitudes. Há um Evangelho do animal, que também morreu nos braços de Deus. O animal tem algo de comum com o Cristo: ele morre pelo mundo e seu sacrifício é indispensável ao equilíbrio deste mundo".

De minha parte, confesso que não entendo muito esses mimos dos cães contemporâneos. Tive cinco cães em minha infância e gostava muito deles. Vivia no campo. Alimentação era problema deles. Por um lado a buscavam na caça e em casa recebiam os restos de comida. Isso de dieta canina era algo inconcebível naqueles pagos. Se estava para morrer, morria. Não tínhamos médico nem para gente. Para cachorro, nem sonhar. Às vezes, algum deles tinha de ser sacrificado. Havia degustado a carne dos cordeiros e não largava o vício. O único remédio era levá-lo para o mato e dar-lhe um tiro na cabeça. Tenho amigas que adoram cães e não entendo muito este amor. Um cão escraviza uma pessoa. Diria que muito mais que uma criança, pois cachorro não tem creche nem escola. Meu bairro é pródigo em cães. Mal saio nas ruas, os vejo comandando, altaneiros, madames e meninas e mesmo varões. O Brasil importou definitivamente este comportamento europeu e a indústria direcionada aos cães só tende a aumentar.

Mas o mundo confortável dos cães europeus parece estar em vias de transformação. Na crônica de ontem, comentei a jihad promovida pelos muçulmanos contra a cachorrada européia. Cães sendo envenenados na Espanha, proprietários de cães hostilizados nas ruas de outros países e mesmo sendo impedidos de entrar em táxi ou ônibus se andam com cães, mesmo que seja um cão-guia de cego. Os árabes, que já introduziram no velho continente a excisão do clitóris e a infibulação da vagina, que fecham ruas em Paris e Marselha para orar com o traseiro virado para a lua e o focinho para Meca, estão até mesmo pretendendo expulsar os cães de algumas cidades. É o que dá dar passaporte a brutos. Sentindo-se cidadãos, sentem-se no direito de moldar a vida das cidades a seu modo.

Como Maomé mandou um dia matar os cães, consideram-no um animal imundo. Os árabes, que só conhecem regimes teocráticos em seus países, não dissociam religião de leis. Para os europeus, é bicho de estimação. O conflito está armado. E tende a transformar-se em guerra.