¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, fevereiro 28, 2012
 
POR QUE LER BONS LIVROS,
QUANDO SE PODE LER OS ÓTIMOS?



Não poucos leitores acharam que usei de mão pesada, ao comentar a reportagem da Veja sobre best-sellers. Que afinal não se lê para transformar o mundo mas pelo prazer de ler, que é melhor ler do que não ler nada ou assistir BBB. Vamos por partes.

Começo por minha parte. Só leio um livro ou assisto um filme se o livro ou filme me dão prazer. Sei, há leituras cujo fascínio está no texto e outras nem tanto. No Quixote, a meu ver, o que mais encanta é o texto de Cervantes, sua ironia constante, seu estilo. Claro que é prazeroso ler Cervantes. Como também ouvir a música de Fernando Pessoa ou José Hernández. Mas também sinto prazer em leituras pesadas como Dostoievski ou Ernest Renan. Se um livro me cansa ou não o entendo, desisto da leitura. Aconteceu por exemplo, com a Breve História do Tempo, de Stephen Hawking. Quando vi que me faltavam conhecimentos de física ou astronomia para entendê-lo, deixei-o de lado. Como também não consegui passar da página 100 de Ulisses ou Grandes Sertões: Veredas. Clarice Lispector, não consigo ler nem dez páginas.

Mas li – e reli – com muito prazer, os sete volumes da História do Cristianismo, de Renan. Li, de um sorvo só, as 1.458 páginas de L’ Histoire de l’Inquisition au Moyen Âge, de Henry Charles Lea. Mais as 1.400 de Un autre Moyen Âge, de Le Goff. Aliás, compro sem hesitar qualquer título assinado por Le Goff. Mas não consigo ler 70 ou 80 páginas do padre Marcelo ou do Paulo Coelho. Aliás, não consigo ler nem 50 linhas. Quando o assunto mexe conosco e o autor escreve bem, mil páginas nos deixam com sede.

Não sou desses que lêem para transformar o mundo. Já fui, é verdade. Aconteceu nos poucos anos de minha adolescência, quando fui contaminado pelo catolicismo e militei na JEC e JUC. Depois disso, veleidade nenhuma de transformar o mundo. O mundo que siga sua rota que eu vou tratar da minha.

Tampouco acho que um jovem deva começar pela grande literatura. Impor a leitura de clássicos a adolescentes é afastá-los da leitura. Certo, eu li o Quixote, pela primeira vez, aos quinze. Mas comecei com revistas em quadrinhos, tipo Zorro, Nyoka, Batman, Superman, Hopalong Cassidy, David Crocket. Tarzan, eu o li em quadrinhos e em livros. O texto de Edgar Rice Burroughs me fazia viajar bem mais longe que os quadrinhos.

Li também muito romance de capa-e-espada, de Michel Zevaco a Alexandre Dumas. Ou os Mistérios de Paris, de Eugène Sue. Mais Jules Verne, é claro. Ou Karl May. Quem lembra hoje de Winnetou ou Mão-de-ferro? Não diria hoje que tais livros constituam grande literatura. Mas fazem um adolescente sonhar e viajar por geografias distantes. Acho que há uma época para chegar-se a Nietzsche ou Dostoievski, e jamais me ocorreria recomendar a um adolescente Crime e Castigo ou Assim Falava Zaratustra.

Claro que é melhor ler qualquer coisa do que não ler nada. Mas se podemos ler boa literatura – ou pelo menos razoável – por que ler bobagens? Há quem vá mais longe. Era Stephan Zweig – se não me falha a memória – que se perguntava: por que ler bons livros, quando se pode ler os ótimos? O best-seller, na verdade, é um livro empurrado pela publicidade. O editor joga milhões na promoção do livro, compra jornais e jornalistas, críticos e resenhistas, e o leitor incauto cai na trapaça. O mesmo acontece com o cinema.

Outros leitores consideram que toda literatura é de auto-ajuda. Se pegamos a palavrinha em sua acepção lata, tenho de concordar. Lemos para entender o mundo e a nós mesmos. Em suma, para construir nossa personalidade, nossa visão de mundo. Quando busco os bons escritores, estou pedindo socorro. Lendo Platão, entendo melhor a Grécia antiga e a cultura ocidental. O mesmo diga-se da Bíblia, se a lemos com olhos de ateu. Lendo Cervantes, entendo melhor a Espanha. Lendo Orwell, entendo com mais acuidade a peste que grassou por todo o século passado.

São leituras que me ajudam, que me transformam. Mas o mesmo não podemos esperar de Jô Soares ou Zíbia Gasparetto. Por auto-ajuda, em sentido estrito, entende-se essa literatura que só ajuda mesmo o autor... a enriquecer. São enlatados repletos de lugares comuns e falsas esperanças. Servem como anestésico às grandes inquietações da existência. Você se sente um inútil? Leia algum desses livrinhos e erga a cabeça, afinal a vida é bela.

Há autores que libertam, e este autor varia de leitor para leitor. No meu caso, foi Nietzsche. Vou reproduzir texto que escrevi há umas três décadas. Meus professores de Filosofia não gostavam do alemão, ele demolia todas as filosofias. Cá e lá ele era citado, afinal não podia ser ignorado. Mas nunca tive professor que recomendasse Nietzsche em suas bibliografias. Para mim, foi autor decisivo em minha vida. É leitura, penso, que deve ser feita quando se é jovem. Não sei se adianta ler Nietzsche aos trinta anos. Também não sei se seria útil a um jovem contemporâneo. Em minha época de universitário, pensamento se demolia com pensamento. Hoje, os meios de comunicação se encarregam deste trabalho de demolição.

Aconteceu nos dias de Porto Alegre. Um colega um tanto inquieto, cujos interesses oscilavam do pugilismo às matemáticas, me abordou com o olhar desvairado. Empunhava um livro com verve. "Tens de ler este alemão. Urgente". Era o Ecce Homo - Como se chega a ser o que se é, de Nietzsche. Seriam umas dez da manhã. Acostumados àqueles humores repentinos, pensei dar uma vista de olhos no livro, para que meu instável amigo não mais me chateasse. Já no índice, comecei a irritar-me. Primeiro capítulo: porque sou tão sábio. Segundo: porque sou tão sagaz. Terceiro: porque escrevo bons livros. O último capítulo, uma pergunta: porque sou uma fatalidade?

É o tipo de introdução que convida o leitor desavisado a jogar o livro longe. Mas uma música qualquer, uma cantata de eremita que volta do deserto, emanava das páginas sublinhadas com fúria naquele livro ensebado. Deixei-me levar pela música, fui entrando na atmosfera rarefeita do pensador. "Ouvi-me!" - alerta Nietzsche já na introdução - "eu sou alguém e, sobretudo, não me confundais com qualquer outro".

Mergulhei com fúria na leitura. Sentia estar perto de algo vital. Este livro, no qual o alemão furibundo se apresenta aos pósteros com as palavras com que Pilatos entrega o Cristo às turbas - Eis o Homem - foi escrito pouco antes de seu mergulho na loucura. É certamente o pensador que com mais energia lutou contra a hipocrisia do cristianismo e contra o próprio Cristo, a ponto de assinar-se, em seus dias de insanidade, como o Anti-Cristo. Ao falar da morte dos deuses pagãos, completava: sim, os deuses gregos morreram. Morreram de rir, ao saber que no Ocidente havia um que se pretendia único.

A manhã se foi, entrei meio-dia adentro, esqueci de almoçar e, lá pelas três da tarde, tive de engolir esta: “Não me são desconhecidas as minhas qualidades de escritor; em determinados casos compreendi como se corrompia o gosto com o manuseio de minha obra. Acaba-se, simplesmente, por não suportar mais a leitura de outros livros, pelo menos os filósofos. (...) Disseram-me que é impossível interromper a leitura dos meus livros, porque eu perturbo até o repouso noturno. Não existem livros mais soberbos e, ao mesmo tempo tão refinados quanto os meus”.

Vontade de jogar fora o livro. Mas já era tarde demais para voltar atrás. Procurei imediatamente as obras completas do autor. Primeira escala, Assim falava Zaratustra: "Exorto-vos, meus irmãos, a permanecer fiéis à terra e a não acreditar naqueles que vos falam de esperanças supraterrestres". Zaratustra é o eremita que, ao voltar da montanha, encontra um santo em uma cabana no bosque, que entoa cânticos para louvar a Deus. O eremita se espanta: "Será possível que este santo ancião ainda não tivesse ouvido no seu bosque que Deus já morreu?"

Para um jovem sufocado pela propaganda de Roma, sorver Nietzsche era como beber água límpida, não poluída pelos construtores de mitos. Passei inclusive a estudar alemão, para degustar no original seus ditirambos. Mas a vida tem outros projetos para os que nela entram, e acabei aprendendo sueco. De qualquer forma, Nietzsche foi decisivo para minha libertação.

Outros livros me ensinaram mais ainda sobre o homem, o mundo e sobre mim mesmo. Mas se hoje sou como sou, isto eu o devo ao pensador alemão. Ler qualquer coisa é melhor do que não ler? Até pode ser. Mas a boa literatura, mesmo minoritária, ainda exige mais que uma vida para ser consumida.

No que me diz respeito, não tenho tempo nem de ler os bons livros que comprei em minhas viagens. Uma das coisas que lamentarei na viagem aquela da qual não se volta é não ter lido todos os livros de minha biblioteca. Boa literatura é o que não falta. Pode não estar nas bancas de jornais ou mesmo em livrarias, mas sempre está ao alcance da mão do leitor mais curioso. Ainda mais nestes dias de Internet.