¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, fevereiro 23, 2012
 
SEIS POR MEIA DÚZIA


Acabei a leitura de Nomade (edição francesa), o segundo livro autobiográfico da somali Ayaan Hirsi Ali. É uma viagem e tanto. Nem tanto no espaço, afinal Mogadiscio fica a poucas horas de Amsterdã ou Nova York. Mas no tempo. Em seus quarenta e três anos, Ayaan varou séculos de distância. Oriunda de uma tribo na Somália, a escritora chegou às metrópoles do século XXI. De menina condenada a ser mulher de um membro qualquer de sua tribo, sem ter chance de não aceitar o macho que a escolheu, Ayaan foi deputada no Parlamento holandês e hoje é escritora traduzida em vários idiomas, com livre trânsito no Ocidente. Este feito não é para qualquer mortal.

A viagem de Ayaan é fascinante. Nos transporta, de uma tribo onde é preciso soprar brasas e apojar cabras para garantir o de comer, ao mundo da telefonia e do cartão de crédito. A autora transita com aisance de um universo a outro, e nos conduz, ocidentais, há séculos atrás no tempo.

Mas o final do livro, pelo menos para mim, deixou algo a desejar. Nos últimos capítulos, a autora abandona o relato autobiográfico e a narrativa das desavenças entre ocidentais e muçulmanos, para advogar uma espécie de resolução do conflito. Ayaan tem uma teoria, segundo a qual a maior parte dos muçulmanos estão em busca de um Deus redentor.

“Eles acreditam que existe uma força superior e que esta força é a provedora de toda moralidade, que ela lhes fornece uma bússola que os ajuda a distinguir o bem do mal. Muitos muçulmanos estão em busca de um conceito de Deus que, a meus olhos, corresponde à definição do deus cristão. Em lugar disso, eles encontram Alá. Eles encontram Alá porque muitos deles nasceram no seio de famílias muçulmanas onde Alá é a divindade reinante desde muitas gerações; outros se convertem ao Islã ou são filhos de convertidos”.

Até aí morreu o Neves. Todos nascemos ateus. Se assumimos qualquer religião, é em função da educação, da família e do Estado. Em minha infância – que tem até muitos pontos em comum com a de Ayaan – eu não tinha religião alguma. Até o dia em que uma catequista chegou àqueles pagos e me jogou na igreja. Nascesse eu na Somália ou em países árabes, não teria chance alguma de escapar ao islamismo. Se Ayaan encontrou Alá, eu encontrei Jeová e mais o judeu aquele. Não há como escapar. Aliás, este foi um dos argumentos que usei, quando adolescente, para negar a idéia de Deus. Se acredito no cristianismo porque nasci aqui, certamente acreditaria no islamismo se tivesse nascido lá. Deus era então algo muito relativo.

Em um encontro com um padre católico em Roma, a escritora sugere que as Igrejas poderiam penetrar as comunidades muçulmanas e fornecer serviços como fazem os muçulmanos radicais: construir novas escolas católicas, hospitais e albergues socioculturais, como aqueles que tiveram uma função altamente civilizadora na época do colonialismo, na África.

“As igrejas dispõem de recursos, da autoridade e das motivações necessárias para converter os imigrantes muçulmanos a um modo de vida e a crenças mais modernas. Ensinem-lhes a higiene, a disciplina, a ética do trabalho e tudo em que vocês acreditam. O Ocidente está perdendo está guerra de propaganda. Mas vocês têm os meios de rivalizar com o Islã fora da Europa e de assimilar vigorosamente os muçulmanos ao interior do espaço europeu”.

Tenho minhas dúvidas. Se o Ocidente, com toda sua cultura e tecnologia, com seu luxo e fartura, com sua arte e sofisticação, não conseguiu até hoje converter os brutos, não creio que estes sejam convencidos com escolas, hospitais e albergues. Escolas, hospitais e albergues são fornecidos aos imigrantes, mas os cabeças-de-toalha não renunciarão jamais a oprimir mulheres e filhas, a cometer crimes de honra e a cortar clitóris. E a erguer o traseiro para a lua em preito a Alá.

Ayaan sugere aos europeus propor aos novos imigrantes muçulmanos o conceito de um Deus que é símbolo de amor, de tolerância, de racionalidade e de patriotismo. Se entendeu muito bem o Islã, parece no entanto não ter lido o livro em que se fundamenta toda nossa cultura. Por mais que a Bíblia fale em amor, Jeová é um deus sanguinolento, que manda matar e arrasar todas as tribos que cultuam outros deuses. A Bíblia é certamente o livro mais intolerante do Ocidente.

Mas digamos que Ayaan esteja se referindo ao Cristo. A diferença não é muita entre o velho e o novo livro. Se Jeová manda exterminar amorreus, heteus, ferezeus, cananeus, heveus, jebuseus - mais tribos do que massacrou Maomé -, o Cristo não fica atrás. Tem apenas mais espírito de síntese: quem não está comigo, está contra mim. Que ninguém espere encontrar tolerância na Bíblia.

Ayaan propõe uma troca de deuses. Em vez de um jugo de cem quilos, você porta sobre a cerviz um jugo de, digamos, vinte quilos. Ora, o homem pode muito bem viver sem jugo algum.

Verdade que viver em uma cultura cristã é bem mais confortável do que viver em outra muçulmana. O cristianismo abrandou um pouco os preceitos bárbaros do judaísmo. A hipocrisia dos católicos - o abandono e ao mesmo tempo crença nos livros antigos - tornou o Ocidente bem mais aprazível.

Mas o que autora está propondo, no fundo, é trocar seis por meia dúzia.