¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

segunda-feira, março 05, 2012
 
AS DUAS INTELIGÊNCIAS


Para efeitos meus, costumo distinguir duas espécies de inteligência, a inteligência burra e a inteligência inteligente. Por inteligência burra, entendo a de um engenheiro que domina o cálculo infinitesimal e não consegue gerir sua vida. Ou a de um cirurgião, que é um virtuose do bisturi mas nada entende do mundo que o cerca.

Já a inteligência inteligente seria aquela de um homem que, além de ser competente em seu ofício, conhece o mundo e a história do mundo em que vive, a meu ver a maneira mais eficaz de conhecer a si mesmo e aos que nos rodeiam. A esta inteligência não se chega lendo livros técnicos. É preciso ler história, filosofia, literatura. Este homem não precisa ser um erudito nestas três áreas: ninguém o é. Mas deverá possuir um conhecimento mínimo dos grandes momentos da aventura humana.

Coloco aqui, ao azar: instituições e filosofia da Grécia antiga, história de Roma, um pouco de judaísmo e muito de cristianismo. Estas são as bases de nossa cultura. Quanto à história pátria, que me desculpem os afonsos celsos da vida, mas ela em pouco ou nada contribui à formação de alguém. É um apêndice da cultura européia. Quem provocou a independência do Brasil não foi Dom Pedro I, como ensinam os livros escolares. Foi Napoleão Bonaparte. Quem norteia o bestunto tupiniquim, não são os pensadores de Pindorama, mas os d’além-mar. O PT, por exemplo, é um subproduto do pensamento de um alemão que vivia em Londres, no século XIX. A Igreja Católica e os neopentescostais que inundam a televisão são decorrências de fatos mais antigos, ocorridos em Jerusalém e Roma há mais de vinte séculos. Originalidade brasileira até que existe. Por exemplo, a regulamentação da profissão de jornalismo.

Estudei História da Filosofia por quatro anos. Nestes estudos, considerei que filosofia é isto: alguém diz que o homem e o universo são assim e vão para lá. Surge outro e diz que o homem e o universo são assado e vêm para cá. A filosofia busca abstrações. Quer definir o que seja o Homem, assim com H maiúsculo, como dizia Sábato. Ora, esse homem não existe. É como buscar o terno ideal que sirva a todos os homens e acaba por não servir a nenhum. O que existe é este homenzinho de todos os dias – com h minúsculo mesmo – que vamos encontrar... na literatura.

O saber racional acaba por negar-se a si mesmo. As filosofias se chocam e se destroem umas às outras. Os filósofos acabam se dando cotoveladas nas enciclopédias, em busca de espaço. Seja como for, filosofia foi a primeira tentativa feita pelo homem de entender seu lugar no mundo. Embora tenha me afastado da filosofia, sempre recomendo ler Platão. Lá estão as eternas perguntas humanas. Mas desista de ler os filósofos contemporâneos. Perderam o rumo. Hoje, a questão principal da filosofia é descobrir quais são os rumos da filosofia.

Só a literatura permanece. Platão, por fascinante que seja, envelheceu. Já a Ars Amatoria, de Ovídio, permanece eternamente jovem. A vida é mais simples do que imaginam os filósofos. O homem nasce e morre e neste interlúdio esperneia. Fim de papo. A filosofia até pode ter pretendido ensinar o homem a viver. Mas a história está repleta de homens que bem conduziram suas vidas, sem nada entender de filosofia.

Comecei minha vida lendo ficções. Foram importantes para minha formação. Ficções, hoje, só releio o que já li. A última ficção que li foi a última que traduzi, em 1993, A Família de Pascual Duarte, de Camilo José Cela. Ficção soberba, aliás. Ou seja, ano que vem completo vinte anos sem ler ficção. Mas os clássicos sempre nos ajudam a melhor entender o mundo e a nós mesmos.

Cheguei àquela idade em que é mais prazeroso reler do que ler. Literatura contemporânea me soa como estar ouvindo todo o dia os mesmos papos de um mesmo boteco. Já autores antigos me fazem viajar ao passado e a geografias distantes.

Em meio a isto, continua provocando indignação a crônica que escrevi sobre os best-sellers recomendados por Veja. Escreve um leitor:

Li o artigo, li novamente e, para emitir minha opinião, efetuei pela terceira vez a leitura de seu artigo.
Sou gaúcho, moro em SP e, em minhas prateleiras, já encontram-se quase que 700 títulos de livros. Todos, sem exceção, pesquiso um mínimo de informações antes de comprá-lo. Claro que compro muita besteira (afinal são 700 livros). Em todos os livros percebo que o autor expressa o que tem. Nada mais, nada menos.
Você espera que o Marcelo Rossi escreva um poema lirico ou então uma sátira atual sobre a economia?! Não. Óbvio que não. Vamos criar juízo pelo fato do autor expressar o que tem internamente? Não. Óbvio que não.
Não gosto também de bests sellers classificados como "povão", mas respeito e não classifico como "lixo". Por fim, para eu entender, porque você acha que todos devem chegar a um Dostoievski, Cervantes ou Nietzsche? Você acha que estas pessoas são melhores?
Lembre-se: quando menos esperar poderás ver sua esposa/filho/ente querido com um Ágape nas mãos!
Abraços
Jonatas


Não, meu caro Jonatas, não espero que o Marcelo Rossi escreva um poema lírico ou uma sátira atual sobre a economia. Nada disso. O que me espanta é ver aquelas bobagens vendendo 7,5 milhões de exemplares. Um país precisa ser muito inculto para tornar um livro desses best-seller. Se bem que, neste sentido, os países em pouco ou nada diferem. Cada um tem o Marcelo Rossi que merece.

Não, não acho que todos devam chegar a um Dostoievski, Cervantes ou Nietzsche. São leituras difíceis, não recomendo a qualquer adolescente. Cá entre nós, nem mesmo acho que as pessoas tenham obrigação de ler. Lê quem busca algo mais que novelas de TV. E há quem se satisfaça plenamente com isto. O penúltimo presidente do país é homem que se gaba de não ler.

Mas estes três autores que você cita são obrigatórios para qualquer pessoa que se pretenda minimamente culta. Em outras palavras: que busque a inteligência inteligente. E não só estes. Quem não tiver idéia de quem foi Ovídio, Homero, Platão, Sócrates, Dante, Swift, Voltaire, Gide, Wilde, Huxley, Orwell, Herman Hesse, Papini, Moravia, Camus, Eça, Pessoa, Hernández, Borges, Sábato, Arlt – falo apenas de mortos – não pode se pretender culto. Não digo que leiam todas suas obras. Mas que pelo menos saibam o lugar que ocupam na cultura ocidental. Você tem uma biblioteca de 700 volumes, não é verdade? Ora, só citei uns vinte autores.

E olhe que estou falando de quem pretenda se considerar minimamente culto. De pessoa culta se exige um pouco mais. É simples: ou você conhece pelo menos o esqueleto da cultura que herdou e que o circunda, ou não conhece. Poderia estender a lista por mais uns cinqüenta nomes, mas fico por aqui.

Mulher ou filho meu jamais teriam Ágape nas mãos. Mulher, porque não me aproximaria de uma leitora do padre Marcelo. Não dá. Não há o que conversar. Talvez haja outras coisas a fazer. Mas conviver, jamais. É o que Goethe chama de afinidades eletivas. Ao procurar um parceiro, queremos alguém que nos acompanhe em nossas predileções. Da mesma forma, eu jamais me aproximaria de uma maconheira ou militante do PSOL. Quanto a filho, convivesse comigo, certamente teria melhores opções de leitura.

Dito isto, as pessoas leiam o que quiserem. Que cada um escolha a inteligência que melhor lhe convier. Para ser bem sucedido neste país nosso, não se exige nenhuma leitura. Reservo-me apenas o direito de manifestar meu pasmo ao ver tanta gente lendo tanto besteirol.

Pior ainda, ver uma revista como a Veja vendo virtudes na leitura de lixo.