¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, março 24, 2012
 
FGV ADERE AO BUDISMO


A prestigiosa Fundação Getúlio Vargas, quem diria, pelo jeito aderiu ao budismo. Pelo menos é o que leio no Estadão: “A riqueza do País pode começar a ser mensurada de outra forma. No lugar do Produto Interno Bruto (PIB), a Felicidade Interna Bruta (FIB). A Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP) está empenhada na elaboração da metodologia do novo índice. A intenção é fornecer os resultados ao governo federal para auxiliar no desenvolvimento de políticas públicas”.

Ou talvez a FGV tenha ouvido o galo cantar, mas não sabe bem onde. Escrevi sobre o assunto há nada menos que seis anos (segue artigo abaixo). FIB foi um golpe de publicidade muito bem sucedido, bolado por Sua Majestade Jigme Singye Wangchuck, o rei do Butão. A fórmula caiu como bálsamo neste Ocidente que não gosta muito de si mesmo. Obviamente, foi logo endossado pelas esquerdas, que detestam a idéia de PIB, esse índice tipicamente capitalista.

Felicidade não depende de riquezas, esta é a idéia que o novo conceito traz embutida. Faz muito sucesso nos Estados Unidos, este fértil celeiro de ideologias malucas. Ano passado ainda, eu comentava o sucesso fulgurante do monge budista negro Steven Kabogosa, nascido em Uganda e que hoje vive nos EUA e viaja pelo mundo ensinando técnicas de meditação. Segundo Bhante Buddharakkhita, seu novo nome budista, a verdadeira felicidade depende de circunstâncias internas, e não externas. “A felicidade dependia de eu desenvolver qualidades internas, meditar, ter bons pensamentos”.

Buddharakkhita deve ser um ugandês privilegiado. Tem hoje 45 anos e viveu em seu país até 1990, quando foi estudar na Punjab University. Depois foi ao Nepal e visitou o Tibete. Em 99, foi aos EUA para um retiro em Massachusetts e viajou pela América Latina. Ou seja, as circunstâncias externas da felicidade parecem ter-lhe sido muito favoráveis. Ninguém voa de graça. Estas deambulações ninguém faz sem uma quantidade razoável de dinheiro.

Há quem seja feliz com muito pouco. Há muitos anos, aqui em São Paulo, numa fria madrugada de agosto, vi um mendigo que ria sozinho, atirado na rua, apoiado em uma garrafa de cachaça. “Como eu sou feliz”, dizia. E não seria eu quem duvidaria de que ele fosse feliz.

Mas Bhante Buddharakkhita que me desculpe. O mendigo sentia-se feliz porque estava bêbado. O álcool torna feliz qualquer desgraçado. Sóbrios, precisamos de algum substrato econômico para a felicidade. Esse substrato o monge parece ter, já que vive viajando de um continente a outro. Assim é muito fácil dizer que felicidade depende de qualidades internas, meditar, ter bons pensamentos.

Mais difícil é ser feliz morando mal, comendo mal, sem ter um vintém para pagar um prazerzinho qualquer. Quando se viaja pelo mundo, sem precisar trabalhar – porque monge não trabalha, sua profissão é ser monge, isto é, um inútil como o Dalai Lama – soa a cinismo afirmar que felicidade depende de bons pensamentos.

Volto à FGV. O primeiro passo do desenvolvimento da metodologia do FIB brasileiro já teria sido dado pela fundação, e mostra que a riqueza econômica não é o principal fator de felicidade da população. Um questionário com jovens adultos de São Paulo e de Santa Maria, pequena cidade no interior do Rio Grande do Sul, mostrou que o índice de satisfação dos jovens gaúchos é 22,5% maior que o dos paulistanos. Entre os 11 aspectos de vida estudados, os mais relevantes para a percepção de satisfação foram vida social, situação financeira e atividades ao ar livre. O índice de Felicidade Interna Bruta (FIB) será produzido pelo núcleo de Estudos de Felicidade e Comportamento Financeiro, que terá gestão de Fábio Gallo e Wesley Mendes.

Ora, São Paulo é uma das maiores e mais cosmopolitas metrópoles do mundo, com aeroportos que despejam gentes para todos os cantos do planetinha, passagem quase obrigatória de qualquer viajante que queira atravessar o oceano. Tem o mundo universitário e editorial e a imprensa mais influentes do país. E onze milhões de habitantes.

Santa Maria é uma tímida cidade gaúcha, com uma base aérea, quatro universidades, 300 mil habitantes e lá só chega um exemplar da Folha de São Paulo, que fica à disposição dos leitores em uma biblioteca. Exceto uma pequena linha aérea que faz três vôos semanais, não há como chegar de avião à cidade. De centro ferroviário do Rio Grande do Sul, trem hoje é lembrança dos antigos em Santa Maria. (Eu sou um desses antigos). Cidade universitária, só tem uma livraria. É óbvio que as ambições de um paulistano serão bem mais amplas que as de um santa-mariense.

De minhas andanças, conclui que a cabeça de uma pessoa depende muito das dimensões do país em que vive. Certa vez, convidei uma parisiense a ir até Estocolmo. Mais c’est le bout du monde! – espantou-se. Se para a francesinha ir até a Suécia era o fim do mundo, para mim era como ir de Porto Alegre ao Rio e ainda sobrava muito Brasil pela frente. Foi comigo só até Amsterdã, era longe mas não muito.

Certa vez, voltando da Europa, o barco entrou em águas brasileiras na altura de Recife. Já no mar da Bahia, uma outra francesa me manifestava seu espanto: mais ce pays ne finit jamais! E não terminava mesmo. Havia ainda muito mais país rumo ao sul. A França tem apenas mil quilômetros em sua extensão máxima.

Conheci nicas e ticas em Paris. Provenientes de países diminutos, para elas fim de mundo era Barcelona. Para mim, brasileiro, fim de mundo ficava um pouco mais adiante. Talvez em Pequim.

Os pesquisadores da FGV estão comparando uvas com melancias. É óbvio que um paulistano tem mais ambições que um santa-mariense. Nos dias em que vivi por lá, ir a Porto Alegre era para mim uma ventura. Hoje, em São Paulo, me entedio como uma ostra se passo um ano sem jantar no Procope ou Sobrino de Botín. Para um santa-mariense, ir até Rivera e comprar na zona franca já é um sucedâneo da felicidade, um atestado de cosmopolitismo. Os paulistanos já estão comprando até sabão em pó em Miami.

Em minha infância no Ponche Verde, conheci um personagem peculiar, de apelido Peão Viajado. Me consta que conhecia Dom Pedrito, Bagé e Livramento. Para mim, era viajado mesmo. Na época, nem Dom Pedrito eu conhecia. “Se eu casasse com a filha de minha lavadeira, talvez eu fosse feliz”, dizia Pessoa. Ocorre que não casou. Se eu ficasse no Ponche Verde, talvez eu fosse feliz. Ocorre que não fiquei.

Se a FGV mantiver esta pesquisa como critério para estabelecer a felicidade bruta nacional, chegará talvez a algo próximo a um ornitorrinco. Com uma diferença: o ornitorrinco tem existência real. O FIB é uma utopia esquerdista que só encontra abrigo no bestunto dos eternos descontentes com o Ocidente. Não há denominador comum entre um homem que se sente bem ouvindo Mozart e degustando um bom vinho e um bruto que vibra, de cerveja em punho, ante um jogo de futebol.

O PSDB já contratou, a peso de ouro, um guru indiano para fazer a última campanha de José Serra. Não seria de espantar que a FGV chamasse o Dalai Lama ou Bhante Buddharakkhita para discutir os rumos do país.