¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, março 28, 2012
 
FINALMENTE MORRE UM
HUMORISTA NO BRASIL



A imprensa nacional saudou, na semana passada, a morte de um humorista. Em verdade, quem morreu foi um piadista vulgar. O humorista morreu hoje. Millôr Fernandes, enfim um escritor sem estilo, como se definia.

Acompanho Millôr desde meus dias de guri, quando assinava coluna em O Cruzeiro. Guardo até hoje comigo sua “Verdadeira História do Paraíso”, em dez páginas, publicada em outubro de 63, que lhe valeu a expulsão da revista.

"Eva, de repente, descobrindo uma bela cascata, resolveu tomar um banho de rio. A criação inteira veio então espiar aquela coisa linda que ninguém conhecia. E quando Eva saiu do banho, toda molhada, naquele mundo inaugural, naquela manhã primeval, estava realmente tão maravilhosa que os anjos, arcanjos e querubins, ao verem a primeira mulher nua sobre a Terra, não se contiveram, começaram a bater palmas e a gritar, entusiasmados: "O AUTOR! O AUTOR! O AUTOR!".

P.S. - Este discurso do Todo-Poderoso está sendo divulgado pela primeira vez em todos os tempos, aqui neste livro. Nunca foi publicado antes, nem mesmo pelo seu órgão oficial, a BÍBLIA".

Fechava a historieta com chave de ouro:

“Toda essa pressa,
demonstra-o incompetente.
Porque fazer a humanidade em sete dias,
Se tinha a eternidade pela frente?”

Nos anos 80, encontrei Millôr em um restaurante da Avenida da Rendeiras, em Florianópolis, acompanhado pela Cora Rónai. Me apresentei como seu freguês de livreta e conversamos boa parte da tarde. Comentei ter recortado a “Verdadeira História” da Cruzeiro.

- Não acredito. Não tens idade para isso.

Tinha. E recitei alguns trechos da história. Mas passo a palavra a Millôr, para que conte o episódio.

- Posteriormente, a história foi apresentada, também, na TV Tupi do Rio, e num espetáculo teatral, Piftac-Zigpong, antes de ser vendida como matéria especial com contrarecibo e pagamento adiantado, pois eu conhecia bem a administração da empresa, para a revista O Cruzeiro, em maio de 1963. A revista, creio que por motivos de programação, só publicou a história seis meses depois, em outubro, ocasião em que eu viajava pela Europa. Uma noite, estando numa festa em Lisboa, me lembro de que havia, na festa, uma ilustre companhia, desde a senhora Princesa da Fátima à não menos senhora condessa de Paris, pois eu, Proust e Ibrahim Sued estamos sempre nessas, o cantor Juca Chaves se aproximou de mim com aquele ar satânico de quem vai anunciar a repetição do terremoto de 1755 e perguntou: "Você viu o que O Cruzeiro escreveu contra você?" Vi no dia seguinte, na embaixada.

- Na primeira página da revista, na qual eu tinha trabalhado 25 anos (seis meninos, tínhamos elevado a vendagem da revista de 11.000 a 750.000 exemplares semanais, a maior da imprensa brasileira em todos os tempos) havia um incrível editorial contra mim, naturalmente não assinado, no qual se dizia que eu tinha publicado a história, dez páginas em quatro cores (!), sem conhecimento da redação, da secretaria e, conseqüentemente, da direção do semanário. Acho que o fato é inédito na história da imprensa e da pusilanimidade internacional e só foi mesmo possível devido ao caos moral em que se transformaram os Diários Associados, desagregação essa que, pelo gigantismo da organização, influenciou, e influencia ainda hoje, no pior sentido, a imprensa brasileira.

Em minha biblioteca, tive por vários anos os quatro exemplares de O Pif-Paf. Infelizmente, sumiram. Ainda nos anos 80, tive oportunidade de fazer uma rápida correção a Millôr. Em sua coluna na Veja, ele escrevera que Shakespeare e Cervantes haviam morrido na mesma data, 23 de abril de 1616. No mesmo dia, sim, comentei. Mas não na mesma data. Castela utilizava o calendário gregoriano desde o século XVI, enquanto a Inglaterra só o adotou em 1751. Ou seja, Shakespeare morreu dez dias depois de Cervantes. Millôr recebeu a observação com simpatia.

Colunista no Pasquim, Millôr acabou se incompatibilizando com os vivaldinos que faziam da contestação seu pé de meia. Foi um dos raros intelectuais do país a definir a verdadeira natureza dos revolucionários pós-64. "A luta armada não deu certo e eles agora pedem indenização? Então, eles não estavam fazendo uma rebelião, mas um investimento". Ziraldo e Jaguar receberam, cada um uma bolsa-ditadura, de R$ 1,2 milhão e R$ 1 milhão respectivamente.

Autodidata - não teve universidade, exceto a do Meyer, como gostava de chamar a Escola Ennes de Souza, onde estudou de 1931 a 1935 – Millôr tinha amplo domínio de línguas e da cultura ocidental. Publicou mais de cinqüenta livros, quinze peças e uma centena de traduções de dramas, tragédias e comédias. Considerado o melhor tradutor de Shakespeare no Brasil, tinha da tradução uma concepção nada teórica, mas rigorosa:

- Fica dito: não se pode traduzir sem ter uma filosofia a respeito do assunto. Não se pode traduzir sem ter o mais absoluto respeito pelo original e, paradoxalmente, sem o atrevimento ocasional de desrespeitar a letra do original exatamente para lhe captar o melhor espírito. Não se pode traduzir sem o mais amplo conhecimento da língua traduzida mas, acima de tudo, sem o fácil domínio da língua para a qual se traduz. Não se pode traduzir sem cultura e, também, contraditoriamente, não se pode traduzir quando se é um erudito, profissional utilíssimo pelas informações que nos presta – que seria de nós sem os eruditos em Shakespeare? – mas cuja tendência fatal é empalhar borboleta. Não se pode traduzir sem intuição. Não se pode traduzir sem ser escritor, com estilo próprio, originalidade sua, sendo profissional. Não se pode traduzir sem dignidade.

Nada a ver com o vulgar piadista da Globo. Compartilhava comigo – e suponho que era o único a compartilhar – minha visão de Machado de Assis como um escritor banal. Sempre considerei absurdo o fato de a crítica tupiniquim considerar como o grande drama nacional o fato de Capitu ter ou não ter traído Bentinho. Dizia Millôr:

- Machado de Assis é um bobo, mas todo o mundo o coloca no céu. É difícil a pessoa recuar naquilo que absorve na juventude. Minha cabeça funciona o tempo todo. A questão da Capitu em Dom Casmurro, por exemplo. Fica todo o mundo preocupado se a Capitu deu ou não para o Escobar. Ora, é evidente que sim. O livro diz que o filho da Capitu tem a cara do Escobar. Demonstro com evidências que Capitu traiu. Bentinho descreve de tal maneira Escobar que ele parece mesmo apaixonado pelo amigo. Peguei trechos sintomáticos do Bentinho no livro. Escobar se afasta no ônibus e Bentinho fica triste porque ele não lhe dá adeus. Eles ficavam de mãos dadas no colégio de padres e os padres achavam aquilo estranho. Não era normal. Dom Casmurro é um livro fraco.

Assino embaixo. Requiescat in pace, caríssimo. Que o inferno te seja ameno. Lá, encontrarás boa companhia, Swift, Voltaire, Nietzsche. No paraíso estão os puxa-sacos de Jeová, que não deve ter gostado de tua versão da Criação.