¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, março 19, 2012
 
A INQUISIÇÃO É VOSSA!


Carlos Alberto di Franco, Doutor em Comunicação, professor de Ética e diretor do Master em Jornalismo, membro da Opus Dei, celibatário, virgem e usuário confesso do cilício por duas horas por dia, decidiu entrar na discussão sobre o uso do crucifixo em tribunais. Em seu apoio, chama Carlos Brickmann, a quem define como jornalista arguto e politicamente incorreto. Só esqueceu de dizer que Brickmann foi assessor de imprensa de Paulo Maluf, mas afinal para que enumerar todas as virtudes do homem em uma simples citação? Diz Brickmann:

“Há religiões; também há a tradição, há também a história. A Inglaterra é um estado onde há plena liberdade religiosa e a rainha é a chefe da Igreja. A Suécia tem plena liberdade religiosa e uma igreja oficial, a Luterana Sueca. A bandeira de nove países europeus onde há plena liberdade religiosa exibe a cruz”.

Ora, que a heráldica européia use a cruz não é coisa que espante. Uma das bases culturais do continente – que um dia se chamou Respublica Christiana – é precisamente o cristianismo. Que na Inglaterra a rainha seja chefe da Igreja anglicana muito menos, mas é bom lembrar que a igreja anglicana é uma ruptura com a tradição católica. O mesmo diga-se da Suécia. De qualquer forma, isto não é nenhum dogma que implique necessariamente a aceitação da cruz nos tribunais do Brasil. Cuja independência, sem ir mais longe, foi uma ruptura com a tradição portuguesa. Como o cristianismo foi uma ruptura com o judaísmo. Não fosse Cristo opor-se à tradição, o cristianismo não existiria.

“O Brasil tem formação cristã; a tradição do país é cristã. Mexer com cruzes e crucifixos vai contra esta formação, vai contra a tradição. A propósito, este colunista não é religioso; e é judeu, não cristão. Mas vive numa cidade que tem nome de santo, fundada por padres, numa região em que boa parte das cidades tem nomes de santos, num país que já foi a Terra de Santa Cruz. Será que não há nada mais a fazer no Brasil exceto combater símbolos religiosos e tradicionais?”

O assessor de Maluf não admite ir contra a tradição. Se sempre foi assim, que assim seja eternamente. Brickmann não aceita a idéia de progresso. Se durante séculos a Igreja dominou soberana sobre os Estados europeus, a divisão entre Estado e Igreja foi certamente obra de celerados que não admitiam a tradição. Democracia, sem ir mais longe, foi idéia que feriu tradições antiqüíssimas. O mesmo se diga da libertação dos escravos e da jornada de trabalho de oito horas. Será que não há nada mais a fazer no mundo exceto combater instituições tradicionais?

O assessor, impertérrito, vai adiante:

“Se não há, vamos começar. Temos de mudar o nome de alguns Estados e cidades como Natal, Belém, São Luís e tantas outras. E declarar que a Constituição do País, promulgada 'sob a proteção de Deus', é inconstitucional”.

Ninguém está propondo mudar o nome de cidades e Estados. O assessor brande um argumento ad absurdum, para comover seus leitores. Isso de mudar nomes de cidades é coisa dos antigos comunistas, que gostavam de homenagear seus tiranos de plantão. Tsarytsin já foi Stalingrado e depois Volgogrado. São Petersburgo virou Petrogrado, depois Leningrado e hoje voltou a ser São Petersburgo.

Nesta mania, os comunistas foram seguidos por seus herdeiros, as esquerdas tupiniquins, que querem mudar os nomes de avenidas e elevadas. É expediente também usado na Espanha, onde as viúvas do Kremlin querem exterminar da memória das gentes a lembrança do homem que salvou a Espanha do comunismo. No Brasil, exceto alguns florianopolitanos, jamais ouvi falar de quem queira mudar o nome de cidades.

Quanto à Constituição, o assessor usou um jogo de palavras. Uma Constituição não pode ser inconstitucional, já que nenhuma outra constituição a rege. Pode ser, isto sim, absurda, incoerente, ilógica, inviável, utópica, colcha de retalhos. Mas jamais inconstitucional. Quem a pariu, que a engula. Continua Brickmann:

“Há vários símbolos da Justiça, sendo os mais conhecidos a balança e a moça de olhos vendados. A balança vem de antigas religiões caldeias. Simboliza a equivalência entre crime e castigo. A moça é Themis, uma titã (sic!) grega, sempre ao lado de Zeus, o maior dos deuses. Personifica a Ordem e o Direito. Como ambos os símbolos são religiosos, deveriam desaparecer também, como o crucifixo?"

Ocorre que ninguém mais cultua Zeus ou Têmis. A mitologia grega nunca nos foi empurrada goela abaixo nem embasa o ensino ou a cultura nacionais. Os gregos, politeístas, nunca tiveram como dogmas suas crenças. Quando Alexandre, trezentos anos antes de Cristo, ao ver-se cultuado como deidade no Oriente, pediu aos gregos que o entronizassem como deus, os atenienses foram generosos. Que assim seja. Mais deuses menos deuses, tanto faz como tanto fez.

O Cristo é impositivo. Exige obediência a seus preceitos e se imiscui no universo das leis. As restrições ao sexo fora do casamento e ao homossexualismo são resquícios do cristianismo. A exigência de fidelidade conjugal também. São cracas que um dia impregnaram nossas leis e que ainda hoje sobrevivem nos costumes. Ora, nem todos são cristãos neste país. Não temos porque conviver, em nossas instituições de Estado, com a presença de um deus obsoleto.

O jornalista virgem, por sua vez, vai mais longe. “Na escalada da intolerância laicista, crescente e ideológica, não surpreenderia uma explosão de ira contra uma das maravilhas do mundo e o nosso mais belo e festejado cartão-postal: o Cristo Redentor, no Rio de Janeiro”.

De novo a reductio ad absurdum, argumento de quem não tem argumentos. Ninguém está pedindo a demolição do Redentor. O que se pede é a retirada de símbolos religiosos dos tribunais. Como é usual neste tipo de fanáticos, Di Franco cria inimigos que não existem, para melhor combatê-los:

“O laicismo militante atual é uma "ideologia", ou seja, uma cosmovisão - um conjunto global de idéias, fechado em si mesmo -, que pretende ser a "única verdade" racional, a única digna de ser levada em consideração na cultura, na política, na legislação, no ensino, etc. Por outras palavras, o laicismo é um dogmatismo secular, ideologicamente totalitário e fechado em sua "verdade única", comparável às demais ideologias totalitárias, como o nazismo. Tal como as políticas nascidas dessas ideologias, o laicismo execra - sem dar audiência ao adversário nem manter respeito por ele - os pensamentos que divergem dos seus "dogmas" e não hesita em mobilizar a "Inquisição" de certos setores para achincalhar - sem o menor respeito pelo diálogo - as idéias ou posições que se opõem ao seu dogmatismo”.

Como se existisse um organismo laicista no país, “ideologicamente totalitário e fechado em sua verdade única”. Quem pediu a exclusão dos crucifixos foi uma liga de lésbicas, não um dogmatismo secular. Esta reivindicação não é exclusivamente brasileira e surgiu originalmente na Itália, berço do cristianismo. Por outro lado, jamais vi movimentos laicistas pretendendo “ser a única verdade racional, a única digna de ser levada em consideração na cultura, na política, na legislação, no ensino, etc”. Verdade única é cacoete de monoteístas, não de pessoas que não acreditam em deus.

Mas o melhor de tudo no discurso de di Franco é chamar de Inquisição a mobilização dos leigos contra o crucifixo. Que me conste, ninguém está pretendendo mandar para a fogueira ou submeter a ordálias os juízes que insistam em usar o antigo instrumento de tortura em seus tribunais.

O velho católico se traiu. Inquisição é coisa vossa, senhores papistas.