¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, março 02, 2012
 
QUE TAL COMEÇAR AS
AULAS COM SULAMITA?



Durante uns bons cinco anos de minha vida, comecei algumas de minhas aulas rezando um padre-nosso. Não via nada de anormal nisso. Eu saíra do campo e passei a freqüentar um colégio católico. Como não tinha idéia alguma do que era um colégio, muito menos de Estado ou de Estado laico, tomei aquilo como uma prática usual do ensino. Só mais tarde, bem mais tarde, fui dar-me conta da lavagem cerebral a que estava sendo submetido.

Sem falar que, na época, eu havia sido abduzido de meu universo camponês e pagão para um outro, urbano e religioso. Acreditava então piamente em um deus criador do céu e da terra, na virgem, no deus feito homem e toda aquela craca católica. Não me parecia nada demais reverenciar o criador de tudo aquilo. Para os eventuais incréus – sempre os há – que desconhecem a oração, transcrevo os textos do Novo Testamento que a inspiraram. Em Mateus, 6:9, lemos:

“Portanto, orai vós deste modo: Pai nosso que estás nos céus, santificado seja o teu nome; venha o teu reino, seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu; o pão nosso de cada dia nos dá hoje; e perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós também temos perdoado aos nossos devedores. E não nos deixes entrar em tentação; mas livra-nos do mal”.

Com algumas variantes, o texto se repete em Lucas, 11:2. As igrejas contemporâneas, para evitar qualquer mal-entendido, andaram trocando dívidas por ofensas, não vá alguém entender que se possa fazer um empréstimo para depois pagá-lo com uma prece.

Repeti este mantra, qual papagaio, quase todos os dias. Mas isto foi há mais de meio século. Final dos anos 50. Mais de cinco décadas transcorreram de lá para cá e o ensino continua refém da superstição. Leio nos jornais que a cidade baiana de Ilhéus começou este ano letivo sob com uma curiosa lei aprovada no final de 2011 pela Câmara de Vereadores. A lei 3.589 determina que todas as escolas municipais fiquem comprometidas a rezar um "Pai Nosso" diariamente antes do início de aulas.

A lei, que ficou conhecida como "Lei do Pai Nosso", foi criada pelo vereador Alzimário Belmonte (PP), evangélico atuante na comunidade. Segundo ele, a intenção não era obrigar ninguém a uma conversão ou submeter outras religiões à fé cristã, mas sim despertar nos jovens valores e reflexão. Ele disse também que, no texto da norma aprovado na Câmara, nenhum tópico cita obrigação às escolas de fazer cumprir a reza.

Diz a secretária de Educação do Município, Lidiney Campos: "Não tem nenhum tipo de pressão no ambiente da escola. Nós trabalhamos com o fato de que cada educador tem de agir de acordo com sua coerência. Claro que nós sabemos que o Estado é laico, mas ao mesmo tempo, dentro de várias escolas, muitos professores já tinham esta prática. Assim, quem já tinha esse costume continua. Alguns que não tinham agora aderiram e quem não quis, não reza", explica a secretária.

Quem não quer não reza? Mas então que lei é essa, que alguns obedecem mas quem não quiser obedecê-la não precisa obedecer? Segundo a professora Maria Aparecida Souza, diretora da Escola Nuclear Jaripaguá 2, a lei foi bem recebida e agora se tornou um costume cultivado cuidadosamente. Ela reconhece que há uma diversidade religiosa nas salas de aula e que a reza não é imposta aos educadores e nem aos alunos, mas que em geral tem havido a celebração do Pai Nosso tanto em aulas quanto em reuniões.

"Esta semana, por exemplo, começamos uma reunião de professores com uma oração espontânea e foi um momento bom. Os pais não reclamam de maneira nenhuma, pelo contrário. Pedem que orientem os filhos na escola. É importante que nós tenhamos valores religiosos na nossa educação. Deus está presente em todos os momentos de nossa educação", diz a diretora.

Visão autoritária de crente. De onde tirou a moça que Deus está presente em todos os momentos de nossa educação? Só se for de seu bestunto. Primeiro, porque Deus não existe. Segundo, se existisse, certamente teria mais coisas a fazer em seus vastos reinos do que participar de reuniões de professores em Ilhéus. A prece antes de cada aula ou reunião não passa de imposição de uma crença religiosa em um Estado que se pretende laico. A leizinha do vereador evangélico é flagrantemente inconstitucional.

Para a pedagoga Maribel Barreto, a lei "é uma chance de usar essa disponibilidade para propor uma coisa mais eclética, como a meditação. Meditação é uma forma de acalmar o externo e se voltar para o interno. Convidar os jovens a buscar observar o que sentem, não o que pensam. Estimular a sentir as batidas do coração, a respiração, em silêncio absoluto". Maribel vai mais longe: defende também que esta prática, que é exercida em algumas escolas fundamentais e também em cursos superiores em Salvador, seja levada ao ensino público municipal e estadual.

Ora, o pai-nosso é um texto tão confessional quanto o Credo. Implica na aceitação de um deus único, ciumento e tirânico. De repente, em nome da liberdade religiosa, algum mulá vai exigir a recitação de trechos do Corão antes de cada aula.

Se a questão é citar a Bíblia, sugiro trechos mais neutros do Livro, e certamente mais instigantes para a juventude contemporânea. Que tal começar as aulas com as angústias da Sulamita:

“Beije-me ele com os beijos da sua boca; porque melhor é o seu amor do que o vinho. Suave é o cheiro dos teus perfumes; como perfume derramado é o teu nome; por isso as donzelas te amam”.

Ou, quem sabe:

“De noite, em meu leito, busquei aquele a quem ama a minha alma; busquei-o, porém não o achei. Levantar-me-ei, pois, e rodearei a cidade; pelas ruas e pelas praças buscarei aquele a quem ama a minha alma. Busquei-o, porém não o achei. Encontraram-me os guardas que rondavam pela cidade; eu lhes perguntei: Vistes, porventura, aquele a quem ama a minha alma? Apenas me tinha apartado deles, quando achei aquele a quem ama a minha alma; detive-o, e não o deixei ir embora, até que o introduzi na casa de minha mãe, na câmara daquela que me concebeu”.

Essa de introduzir o amado no quarto da mãe seria muito instigante para adolescentes. Mais estimulante ainda é a resposta do amado:

“Quão formosos são os teus pés nas sandálias, ó filha de príncipe! Os contornos das tuas coxas são como jóias, obra das mãos de artista. O teu umbigo como uma taça redonda, a que não falta bebida; o teu ventre como montão de trigo, cercado de lírios. Os teus seios são como dois filhos gêmeos da gazela”.

São poemas bíblicos que, a meu ver, propiciam a meditação, acalmam o externo e se voltam para o interno. Convidam os jovens a buscar observar o que sentem, não o que pensam. Estimulam a sentir as batidas do coração, a respiração, em silêncio absoluto.

Aposto que a juventude baiana adoraria começar suas aulas com Sulamita, em vez dos evangelistas. E eu teria mais gratas lembranças de meus dias de ginásio.