¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, abril 04, 2012
 
EU E ELES (II) *


Entre estes ilustres equivocados, há um que sempre recordo com carinho. É o Dyonélio Machado. Conhecendo o homem de perto como o conheci, é difícil entender como endossou, durante toda sua vida, o embuste do século. Quando tentava extrair-lhe alguma coisa, o que pensava de Stalin, dos gulags, Dyonélio tirava o corpo fora: "não quero dar argumentos para eles". Preferia falar-me de coisas mais antigas. Dispunha uma Bíblia sobre um atril, apanhava um tomo de Renan e me passava sua interpretação de cada versículo.

Atitude idêntica tomou em relação à sua obra. Entregou o Naziazeno (seu personagem mais forte, um pobre coitado torturado pela urgência de pagar um litro de leite) à sua própria sorte e mergulhou na Grécia e Egito de antes de Cristo com tal determinação que chegou a estudar grego e o regime das cheias do Nilo para estabelecer a geografia de seus personagens. Para mim não restava dúvida alguma: temeroso de ver seu sonho despedaçado pela truculência real do socialismo, Dyonélio abandonou seu tempo e fugiu a trote largo rumo aos antigos.

Quanto aos demais escritores gaúchos que desenvolveram obra, perdoem-me os cultores de ídolos: de Erico Verissimo a Moacyr Scliar, todos foram omissos na denúncia da peste que contaminou o século. Verissimo constitui um problema para minha geração. Afável, receptivo, carinhoso com todo jovem que fosse visitá-lo, torna-se imune a qualquer crítica. Nélson Rodrigues, que estava longe de sua aura, escreveu:

"Nunca me esqueço de Erico Verissimo. Tem tão escassa formação política que é capaz de pensar que somos governados ainda por Pedro II. E o nosso Erico achou-se na obrigação de vir a público meter o pau nos Estados Unidos. No Brasil, o intelectual tem que xingar a grande nação para sobreviver".

Denunciar o regime soviético, na época, era perder espaço nas universidades e na imprensa nacional. Esta sabotagem, eu a vivi na própria pele. Perdi empregos, tribunas, amigos e até mesmo mulheres, por sempre ter dito e escrito o que pensava da utopia soviética. Certa vez, estive debaixo do chuveiro com uma jornalista de esquerda, das mais excitantes, que me afastou de seu corpo com todas suas mãos e um argumento imperativo: "sinto por ti atração física e intelectual, pena que não afinamos ideologicamente". Assim eram aqueles dias.

Um pouco antes da queda do muro de Berlim, em visita a Dom Pedrito, fui visitar um dos melhores mestres que já tive, o professor Hugo Brenner de Macedo. Entre um chimarrão e outro, fui contando o que havia visto nos países do Leste por onde andei, mais o que sabia sobre outros. Professor Hugo me olhava com paciência e ceticismo. Ao final da charla, comentou: "deves receber fortunas fazendo palestras nesse tom mundo à fora". Candura de quem não saiu da aldeia: fortuna teria feito se dissesse o contrário, como fortuna fizeram Amado, Neruda, Picasso, Brecht, Sartre e milhares de outros.

Entre os que escrevem, salvo engano, além deste que vos irrita, só um outro jornalista gaúcho teve topete para denunciar a peste. (Excluo Dom Vicente Scherer, príncipe da Igreja que combatia o marxismo em nome de uma visão medieval de mundo). Vejamos algumas observações deste jornalista sobre o mundo soviético:

Sem qualquer exagero, pode-se dizer que o sistema de granjas coletivas, os chamados kolkhoses, em linhas gerais, significam o produto mais acabado da transposição evolutiva, para a esfera do trabalho agrícola, do mesmo regime aplastrante de exploração do braço trabalhador que impera nas fábricas soviéticas. (...) Pois o que realmente existe na URSS, em matéria de agricultura coletivizada, analisado friamente, sem os antolhos da propaganda comunista, fica reduzido apenas ao azorrague dum contrato leonino, imposto aos camponeses com o mesmo espirito desprezível de rapina que definia o regime feudalista, no qual os donos da terra eram também os senhores absolutos de todos os destinos. A diferença - se isto é diferença - é que, na União Soviética, o único senhor feudal de tierras y haciendas é o próprio Estado, cujo poder e riqueza estão tristemente alicerçados na miséria e na escravidão de imensas legiões de trabalhadores, espoliados nos seus mais elementares direitos e aspirações por uma societas sceleris de oportunistas e charlatães.

Ao infeliz mujik que vivia confinado na solidão da isba, vítima da exploração desapiedada do pope e do paizinho czarista, sucedeu o kolkhoziano das granjas coletivas, cruelmente explorado pelos novos potentados do superfabuloso império dos sovietes. A exploração e a prepotência não mudam de nome apenas porque mudaram seus fautores. No caso da União Soviética, a verdade decepcionante é que a opressão e a violência contra a criatura humana jamais poderão atingir aos extremos limites de aviltamento e degradação que o Estado conseguiu impor em pouco mais de 30 anos de experiência bolchevista.


Propositadamente, omiti nome do autor e data destas afirmações. Continuasse a omitir estes dados, elas seriam absolutamente contemporâneas, e mesmo velhos stalinistas como Jürgen Habermas ou Cornelius Castoriadis as assinariam embaixo, com a solenidade de quem acaba de descobrir a América. Acontece que elas foram publicadas em 1954, quando ainda um Jorge Amado acreditava em Stalin, oito anos antes das revelações de Osvaldo Peralva.

Foram publicadas no mesmo ano em que Sartre, ao voltar da União So¬viética, dava entrevista ao Libération alertando que a França, caso não mudasse de rumos, em cinco anos, no mais tardar, seria ultrapassada pela URSS. A única mudança de rumos, evidentemente, era seguir o caminho do socialismo. As citações supra estão em A Sombra do Kremlin, de Orlando Loureiro, cria de Santa Cruz do Sul. O livro foi editado pela Globo e suas reflexões são decorrentes de uma viagem à ex-União Soviética, nos meses de dezembro de 1952 e janeiro de 1953, ou seja, antes da morte do Paizinho dos Povos. Sartre fez escola. Loureiro, inimigos.

A viagem foi logo após um Congresso dos Povos pela Paz, em Viena, uma dessas reuniões em que os fiéis discípulos de Stalin pregavam a guerra. Neste encontro, entre outras cortesãs internacionais, rodavam a baiana Sartre, Jorge Amado, Pablo Neruda, Louis Aragon. De Viena, Loureiro é selecionado para ir a Moscou. Tem como companheira de comitiva, entre outras personalidades, Maria Della Costa, o que explica em boa parte sua carreira no Brasil. Ela viu de perto a tirania e silenciou. Palmas para a atriz. O mesmo não ocorreu com Loureiro. Jornalista, o autor não precisou de lupa para ver que havia uma só imprensa no mundo soviético:

Na URSS nunca existem duas opiniões a respeito de um mesmo fato ou acontecimento, porque o direito de pensar e opinar é prerrogativa apenas das elites dirigentes. O governo pensa prodigiosamente por 200 milhões de cabeças, obedientes e submissas dentro das fronteiras da contraditória democracia do proletariado. (...) As rotativas dessa poderosa usina geradora do pensamento comunista rodam ininterruptamente, dia e noite, para alimentar uma das mais fantásticas organizações de propaganda mundial de que se tem notícia. Essa verdadeira enxurrada de literatura marxista inunda os pontos mais remotos da terra e representa a persistente contribuição de Moscou aos seus fiéis, para as tarefas de catequese e proselitismo do proletariado universal. São milhares de toneladas de papel e tinta despejadas mensalmente na garganta anônima das grandes capitais do mundo, numa batalha obsedante pela arregimentação dos rebanhos humanos extraviados na voragem dos conflitos sociais e econômicos do nosso tempo.

Jorge Amado, "ruidoso camelô do marxismo", como diz Loureiro, participa desta comitiva e sabe disto muito bem. Em uma visita à União dos Escritores Soviéticos, diz a Loureiro: "Na Rússia Soviética todo o trabalho intelectual é regiamente pago. As tiragens são geralmente elevadas e os escritores recebem grandes somas em direitos autorais. Há poetas que podem viver como milionários."

Amado sabe o que quer. Loureiro prefere contar o que vê:

A União dos Escritores funciona como um Vaticano para a moderna literatura soviética. O julgamento das obras a serem lançadas obedece a um critério estreito e sectário de crítica literária. Esta função é exercida por um conselho reunido em assembléia, que discute os novos livros e sobre eles firma a opinião oficial da sociedade. A exegese não se restringe aos aspectos literários ou artísticos da obra julgada, senão que abrange com particular severidade o seu conteúdo filosófico, que deve estar em harmonia com os conceitos da "realidade socialista" e guardar absoluta fidelidade aos princípios ideológicos da doutrina marxista. Se o livro apresentar méritos do ponto de vista dessa moral convencionada, se resistir ao crivo desse teste de eliminatória, então passará por um rigoroso trabalho de equipe dentro dos órgãos técnicos da União, podendo vir a transformar-se num legítimo best-seller, com tiragens astronômicas de 2 a 3 milhões de exemplares. E o seu modesto e obscuro autor poderá ser um nouveau riche da literatura e será festejado e exaltado e terminará ganhando o cobiçado Prêmio Stalin.

O que explica a fortuna dos Amados e Nerudas da vida, ambos detentores do Prêmio Stalin, suas inúmeras traduções e tiragens milionárias, às custas da opressão, massacre e assassinato de milhões de seres humanos. O lúcido relato de viagem de Loureiro, um dos raros a intuir a essência do regime so¬viético, escassamente mereceu uma segunda edição.

Falar em comunistas gaúchos e não citar Luís Carlos Prestes é ignorar o embuste maior que Porto Alegre já produziu. Embalado pelas proezas de uma coluna absurda, que se tornou famosa por suas "gloriosas" retiradas, ao refugiar-se nas margens do Prata acabou sendo contaminado pela mosca azul do poder. Treinado em Moscou, veio a mando do Kremlin fazer a "revolução" no Brasil. Deu no que deu: uma intentona ridícula e sangrenta, liderada por desvairados que de Brasil pouco ou nada conheciam. Preso e derrotado, acabou morando vários anos em Moscou. Cego e teimoso, em todo esse tempo não conseguiu ver o que Loureiro constatou em apenas dois meses. Morreu em odor de stalinismo. E ainda hoje há quem queira erguer-lhe monumentos.

Está ocorrendo uma patologia estranha neste final de século em Porto Alegre. Por todas as partes do mundo, as sociedades estão derrubando mitos, monumentos, símbolos de tiranias passadas. Parece que a peste se entranhou de tal forma na universidade e nas instituições culturais da capital gaúcha que, enquanto a humanidade avança - para a frente, como é normal - a intelectuália do Portinho vira as costas para o futuro e fica acariciando um baú repleto de coisas mortas.

* Depoimento publicado na coletânea "Nós, os Gaúchos", Ed. Universidade/UFRGS, Porto Alegre, 1992