¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, maio 17, 2012
 
DO CÁLCULO RENAL À EPIFANIA


Nada se cria, tudo se copia, dizem as gentes. Se existe um campo onde este axioma impera, este campo é o das religiões. A começar pelo judaísmo. Não existe Bíblia sem o Egito, dizia Thomas Römer, especialista em história bíblica. O monoteísmo judaico já está em Akenathon. Com a diferença de que Akenathon teve existência atestada na história. E de Moisés, o patriarca dos judeus, não temos sequer um sinal de sua passagem no tempo. A autoria da Torá – Pentateuco, para os cristãos – não procede, pois no último dos cinco livros, o Deuteronômio, Moisés narra sua própria morte. Nem Cristo ousou tanto, deixou este relato para os evangelistas. Freud, em Moisés e a religião monoteísta, faz de Moisés um discípulo de Akenathon que teria se associado aos judeus para ensinar-lhes a religião monoteísta.

Quanto aos cristãos, tiveram ainda mais religião de quem copiar. O Novo Testamento é uma apropriação indébita – para não dizer roubo – do livro dos judeus, acrescido de mitos gregos e do pganismo. A História está repleta de deuses nascidos de virgens e mortos no solstício de inverno. A vasta proliferação de denominações cristãs era tendência já embutida no próprio cristianismo. No Brasil contemporâneo, elas brotam como cogumelos após a chuva e fazem feroz concorrência aos católicos.

Não há religião hoje que não seja uma sopa de religiões antigas. Os tais de neopentescostais, que infestam as cadeias de televisão no mundo todo, são outros que se apossam do Livro a seu modo. O mesmo fizeram os espíritas. Hippolyte Léon Denizard Rivail, mais conhecido como Allan Kardec, misturou evangelhos com a teoria do magnetismo animal do austríaco Franz Anton Mesmer e construiu sua ficção. Mesmer era médico, estudava teologia e retomou a antiga picaretagem da imposição das mãos. Curiosamente, Kardec, que é francês e está sepultado no Père Lachaise, em Paris, é praticamente desconhecido em seu país. Sua tumba está sempre cheia de flores, colocadas geralmente por brasileiros.

Há alguns anos, recebi visita de amiga que há décadas não via. Para minha surpresa, revelou-se espírita e umbandista. Profundo mistério. Sempre vi o espiritismo como uma religião de origem francesa, inspirada nas teorias de Mesmer, e a umbanda como um culto animista de origem africana. Não via como alguém podia assumir coisas tão díspares. Saí então a pesquisar. E descobri coisas que, como a jaboticaba, só ocorrem no Brasil.

Segundo J. Alves Oliveira, em Umbanda Cristã e Brasileira, no dia 15 de novembro de 1908, o Caboclo das Sete Encruzilhadas se manifestou numa sessão espírita kardecista em Neves, São Gonçalo, município fluminense próximo ao Rio, então capital federal. “Foi um escândalo" – escreve Matinas Suzuki, na Folha de São Paulo -. “Embora haja indícios de incorporações de espíritos de índios e de escravos negros nas diversas formas de macumba que existiam no Rio de Janeiro do século 19, os kardecistas não os admitiam por considerá-los espíritos marginais e pouco evoluídos. Quem recebeu o caboclo indesejado, e logo em seguida o preto-velho Pai Antônio, foi Zélio Fernandino de Moraes, um rapaz de 17 anos que se preparava para entrar para a Escola Naval”.

O achado do Zélio Fernandino parece ter vindo de encontro a alguma inconsciente aspiração brasílica e fez escola. Assim como os católicos se apossaram do livro judaico, os umbandistas reivindicaram para si o mediunismo, trouvaille de Allan Kardec. Segundo Alves Oliveira, o caboclo teria assim se revelado: "Se julgam atrasados esses espíritos dos pretos e dos índios [caboclos], devo dizer que amanhã estarei em casa deste aparelho [o médium Zélio de Moraes] para dar início a um culto em que esses pretos e esses índios poderão dar a sua mensagem e, assim, cumprir a missão que o plano espiritual lhes confiou".

O espiritismo então abrasileirou-se, para desalento de seus mentores europeus. Contei então a história do Zélio Fernandino à minha amiga. Que a desconhecia totalmente. Ou seja, nem sabia como se havia operado a fusão de duas religiões em seu cerebrinho. A lambança é tal que já há centros orixás da umbanda, santos católicos e retratos de pregadores do Santo Daime posicionados em lugares estratégicos dos terreiros. E já existe inclusive o umbandaime, que promove a mistura entre a doutrina do daime com a religião afro-brasileira.

O Santo Daime desbundou. É um culto sem pé nem cabeça, criado por um seringueiro da Amazônia, cujas cerimônias consistem na ingestão da ayahuasca, beberagem feita de um cipó, que produz vômitos e diarréias, as chamadas “peias”. A nova empulhação cultua o Cristo, a Virgem... e a floresta amazônica, ecologia oblige. Pelo jeito, as tais de peias não eram muito convincentes a ponto de por si só arrebanhar acólitos. O Santo Daime então adaptou-se. Assumiu elementos de hinduísmo, umbanda e hare krishna. Deus para todos os gostos. Aqui pertinho de São Paulo, em Nazaré Paulista, a escola espiritual tem dois gurus, um tal de Sri Prem Baba, o mestre da cerimônia, que pelo jeito é tupiniquim com nome indiano para melhor enganar. Mais o guru Sri Hans Raj Maharaji, que vive na Índia, mas já apita no Santo Daime. Mais o sedizente mestre Raimundo Irineu Serra, seringueiro brasileiro neto de escravos, que morreu em 1971, e teria sido o fundador da doutrina do chá de cipó.

São Paulo, com a maior clientela de crentes potenciais do país, é um semental de novas fés. Outro dia, zapeando na televisão, descobri uma nova igreja, a bereana. E porque bereana? Porque em Atos está escrito: “E logo, durante a noite, os irmãos enviaram Paulo e Silas para Beréia; ali chegados, dirigiram-se à sinagoga dos judeus. Ora, estes de Beréia eram mais nobres que os de Tessalônica; pois receberam a palavra com toda a avidez, examinando as Escrituras todos os dias para ver se as coisas eram, de fato, assim”. A palavrinha se repete só mais duas vezes e já deu origem a uma igreja. Afinal os judeus de Beréia era mais nobres que os de Tessalônica. E mais nada sabemos de Beréia. Mas quando descobri a nova crença – há coisa de uma semana – as igrejas já eram três: temos a Igreja Evangélica Bereana, a Batista Missionária Bereana e a Adventista Bereana. Com tantos pastores proclamando a independência, a igreja deve ser das mais lucrativas.

E as religiões continuam saltando como pipocas na panela. Em 11 de novembro do ano passado foi criada a Igreja Templária de Cristo na Terra. Seus adeptos seriam nada menos que a reencarnação dos Cavaleiros Templários, braço militar da Igreja Católica formado por monges com voto de pobreza que aceitaram a tarefa de proteger os cristãos dos muçulmanos. De novembro para cá, são apenas seis meses. E a novel igreja já tem um primeiro-ministro, quatro bispos, 20 ministros e 560 mestres, cada qual encarregado de cuidar de 70 fiéis. Walter Sandro Pereira da Silva, o apóstolo fundador, vive “uma vida simples”, em uma casa em São Bernardo do Campo (o “solo sagrado”), com nove dos ministros, sua mãe e cerca de 80 cães e gatos – a igreja tem como tarefa tirar animais da rua.

Quem nos conta é Willian Vieira, repórter da CartaCapital. Com 70 fiéis para 560 mestres, temos 39.200 seguidores. Tudo isso em seis meses, o que dá mais de 6.500 adeptos por mês. O que dá mais de 1600 conversões por semana. Mais de 230 por dia. Mesmo sentado à mão direita do Pai, o Cristo – que, após três anos de pregação, mal teve um gato pingado para acompanhá-lo ao monte Calvário – deve estar se roendo de inveja.

Walter Sandro, pernambucano pobre de Gravatá, descobriu cedo sua missão. Tinha 2 anos e meio e procurava desesperado a chupeta perdida, quando o Arcanjo Miguel veio em seu auxílio pela primeira vez. “Foi quando apareceu este ser dizendo que ela estava debaixo da cama e que eu devia procurar o Salmo 91.” Quando os pais encontraram o pequeno, ele tinha a chupeta na boca e a Bíblia na mão: milagre. “Nenhum mal te sucederá, nem praga alguma chegará à tua tenda. Porque aos seus anjos dará ordem a teu respeito, para te guardarem em todos os teus caminhos”, dizia o premonitório texto bíblico.

Walter Sandro veio para São Paulo bebê e só voltou a falar com o arcanjo aos 13 anos, quando foi visitar sua cidade natal. Miguel disse-lhe que deveria pregar. Virou evangélico. Anos depois, quando começou a vender seguros, descobriu o dom da retórica e passou a dar palestras motivacionais: deixe de fumar, emagreça, conquiste o amor.

A epifania mesmo só ocorreu em novembro passado, quando Walter Sandro estava prestes a entrar no ar pelo canal UHF 58. Um novo milagre se deu. “O Arcanjo Miguel materializou-se e disse para eu abrir a igreja. Foi tão forte que tive uma crise de cálculo renal. Fui ao banheiro e ele veio e disse pra botar a mão na urina. Eu pus. E saiu uma pedra do tamanho de meio grão de feijão.” À meia-noite o programa foi ao ar já com o nome de Igreja Templária. As reuniões começaram como uma espécie de maçonaria, que aos poucos incorporou doses de Reiki, ioga e passe espírita. Uma pitada de Oriente, outra de espiritismo. Jogue tudo num caldo de cristianismo, misture e agite bem. Está criada uma nova religião.

Com apenas seis meses de existência, além do prédio na Rua Leais Paulistanos, a igreja tem sedes no Rio de Janeiro, no Espírito Santo e em Minas Gerais. É mantida pelo “Carnê da Gratidão”, um boleto com depósito de 33 reais em uma conta do Banco do Brasil. “A pessoa não paga. Ela doa.” E ganha, de quebra, o número do celular de um dos mestres para ligar quando quiser, todo dia até as 2 da manhã. “Qual seu problema? Bem, às vezes Deus não cura agora para testar sua fé”. Vinte pessoas se revezam em três turnos para atender 3 mil ligações por dia no telemarketing. Se tudo der certo e o arcanjo ajudar, em breve a igreja terá seu canal UHF (que custou 120 mil reais) para levar, “em cadeia nacional”, a mensagem do fim do preconceito. “Nós não temos nenhum.”

Você está desempregado e o mercado não está para peixe? Crie uma religião. É aposta segura. Nenhum outro ramo do trabalho lhe proporcionará tais retornos em apenas meio ano.