¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, maio 05, 2012
 
QUANDO O AMOR VIRA INCISO
DO DIREITO DAS OBRIGAÇÕES



Dichosos tiempos aquellos – como diria Alonso Quijano – em que se falava em fúria legiferante do Legislativo. Vivemos hoje dias de fúria legiferante ... do Judiciário. Em decisão inédita no Superior Tribunal de Justiça (STJ), um pai foi condenado a pagar indenização de R$ 200 mil por abandono afetivo. De acordo com a assessoria de imprensa do STJ, a filha entrou com uma ação contra o pai após ter obtido reconhecimento judicial da paternidade e alegou ter sofrido abandono material e afetivo durante a infância e adolescência. A autora da ação argumentou que não recebeu os mesmos tratamentos que seus irmãos, filhos de outro casamento do pai. Como não existe lei que contemple este tipo de ação, a Terceira Turma decidiu legislar.

Judiciário legislar está virando moda, comentei há pouco. Alega-se que o Legislativo demora demais para elaborar leis, deixando vácuos legais. Pode ser. O fato é que elaborar leis nunca foi função do Judiciário. A Constituição de 88, que desde o berço foi concebida como uma colcha de retalhos, está virando um variegado patchwork. Casamento é entre homem e mulher? Pode ser. Mas pode também não ser. Todos são iguais perante a lei? Talvez sim. Mas talvez não. Tudo depende de interpretação. No caso das cotas, o STF tirou da manga o exótico conceito de “igualdade material”, para justificar a oficialização do racismo.

Na última década surgiu aos poucos, no seio do Judiciário, a tese do abandono afetivo. Que impõe a um pai a obrigação de amar seu filho, como se fosse possível amar por decreto. Várias ações provocaram o Judiciário. Mas atenção: sempre é o pai que tem obrigação de amar. Não vi, até hoje, esta ação impetrada contra uma mãe. A razão é simples. O filho que se julga abandonado, em vez de exigir carinho ou afeto, se contenta com uma gorda indenização. Como em geral o provedor é o pai, é sempre contra ele que se propõe a ação. Ainda mais se for um empresário bem sucedido. Filho algum vai acionar por abandono afetivo um pai que vive de salário mínimo.

No caso da moça que pediu indenização, uma professora de Votorantim (SP), a ministra Nancy Andrighi, da Terceira Turma do STJ, determinou uma indenização de 200 mil reais. O caso havia sido julgado improcedente em primeira instância, tendo o juiz entendido que o distanciamento se deveu ao comportamento agressivo da mãe em relação ao pai. A autora recorreu, e o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) reformou a sentença, reconhecendo o abandono afetivo e afirmando que o pai era “abastado e próspero”. Na ocasião, o TJ-SP condenou o pai a pagar o valor de R$ 415 mil como indenização à filha. A ministra Andrighi achou por bem tabelar o amor paterno pela metade do preço. Amor virou inciso do Direito das Obrigações.

O caso não é novo. Em setembro de 2003, o juiz Mário Romano Maggioni, da comarca de Capão da Canoa, Rio Grande do Sul, condenou o advogado e vereador Daniel Viriato Afonso a reparar sua filha em R$ 48 mil por abandono afetivo. Esta teria sido a primeira ação brasileira de filho contra pai por abandono que transitou em julgado.

Pior ainda, a sentença obrigava o pai a “passar a visitar a filha, no mínimo a cada 15 dias, levando-a a passear consigo, comprometendo-se, também, em acompanhar seu desenvolvimento infanto-juvenil, prestando assistência, apresentando a criança aos parentes pelo lado paterno”. Imagine um pai que recusa o filho sendo obrigado a fingir que o adora. Se antes só havia uma recusa, a convivência forçada abre as portas para a raiva ou ódio.

Várias ações neste sentido foram impetradas de lá para cá, tendo os juízes se pronunciado ora a favor, ora contra a pretensão da parte impetrante. Leio na revista Consultor Jurídico que, ano passado, a juíza Laura de Mattos Almeida, da 22ª Vara Cível de São Paulo, negou uma indenização a uma filha que foi gerada fora do casamento.

Aos 37 anos, a recepcionista desempregada conta que, filha de pai “riquíssimo”, atravessou uma vida de privações. Enquanto seus irmãos viajavam à Europa, ela começou a trabalhar aos 14 anos para engrossar as finanças da casa. Na tentativa de reaver os prejuízos financeiros, psíquicos e morais causados pela ausência do pai, a mulher ajuizou um pedido de danos morais no valor de R$ 6 milhões. Valor que, certamente, cobre qualquer carência de afeto. Mas a recepcionista não levou. “Não há como obrigar uma pessoa a amar outra”, argumentou a juíza.

Os juízes que condenam pais por abandono afetivo estão contaminados pelo ranço cristão do “amai-vos uns aos outros”. Este é um dos mais perversos momentos do cristianismo. Ninguém pode obrigar ninguém a amar, como disse sensatamente Mattos Almeida. Sem falar que, como perceberam Nietzsche e Kierkegaard, esta ordem exclui o sentimento de amizade. Amizade é eleição, afinidade eletiva. Se tenho de amar o próximo, não sobra espaço para o amigo.

Em 3 de março do ano passado, chegou à Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado o Projeto de Lei 700, 2007, que pretendia caracterizar o abandono moral como ilícito civil e penal, de autoria deste impoluto pastor evangélico, o senador Marcelo Crivella (PRB-RJ). Até agora, a matéria aguarda julgamento e está sob a relatoria ... do também impoluto senador Demóstenes Torres (DEM-GO). Ou seja, tão cedo o projeto não vira lei.

Tem um pai – ou mãe – obrigação de amar um filho? Esta seria a normalidade das coisas, mas os fatos são teimosos. E se o filho é um celerado, assassino ou drogado, como tantos que existem neste mundinho, apesar dos esforços paternos de educá-lo para a vida? E se o filho matou a mãe, como tantos matam? E se o filho – por uma ou outra razão – tornou-se inimigo do pai? Vivemos em um mundo em que milhares de adolescentes odeiam os pais. Devem os pais responder com amor e carinho?

Não sou pessoa competente para responder a tais questões, já que meu conceito de família não é carnal. Considero minha família as pessoas que elegi em minha vida e minhas andanças. Coincidentemente, minha filha pertence a esta família. Gosto dela não exatamente por ser filha, mas por ser como é. Considero este sentimento mais forte que qualquer laço de sangue.

Seja como for, a decisão da juíza da Terceira Turma deixa no ar algumas perguntas. Poderá uma mulher exigir indenização do marido por abandono afetivo? Ou por não cumprimento dos deveres de estado? Se a filha não legítima pode pedir indenização, fica outra pergunta pendente: pode uma amante, que se sente pouco considerada, exigir pagamento por falta de afeto? Pode um pai ou mãe exigir indenização por falta de afeto de um filho adulto?

A juíza da Terceira Turma, ao que tudo indica, não pensou nestas decorrências lógicas de sua sentença.