¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, junho 24, 2012
 
ENTREVISTA ANTIGA (I)
(junho 2003)

por Diogo Chiuso e Sidney Vida

Não é fácil entrevistar alguém que sempre tem algo interessante a dizer, principalmente na hora da edição do texto. Essa é a parte complicada quando o entrevistado é alguém como o jornalista Janer Cristaldo, que deixou clara a impressão de que para cada assunto levantado caberia mais e mais perguntas.

Felizmente no jornalismo online não temos os problemas técnicos e de espaço em papel, como no jornalismo impresso. Portanto, no final das contas, toda a complicação teve uma simples solução: publicar a entrevista na íntegra, sem cortes, nem edição.

Mas não poderíamos privar os leitores de tentar conhecer como Janer Cristaldo é pessoalmente. Já lá com seus 56 anos, mais parece um garotão entusiasmado com a beleza das mulheres e das lindas cidades européias. Até hoje não possui automóvel, pois preferiu gastar seu dinheiro em momentos bem vividos em viagens à Europa, estampadas em lindas fotos de bares e cafés nas paredes. "Adoro bares, aliás, é meu lugar preferido para a leitura", confessa, apontado, numa das fotos o seu preferido, um café em Viena.

Além da agradável recepção em seu apartamento no charmoso bairro paulistano, Higienópolis, Janer fez questão de nos guiar pela imensa biblioteca que viaja pelo mundo das idéias, da literatura e até dos "inimigos", como refere-se com zombaria aos comunistas. Relembra fatos de sua infância em Dom Pedrito - pequena cidade do Rio Grande do Sul - e fala de suas experiências nos jornais paulistas Folha de São Paulo e Estadão. Considera a imprensa brasileira, apesar de tudo, muito boa por abranger o mundo todo na editoria internacional, diferente da americana e européia que centralizam as notícias em informações "caseiras". Em compensação, critica o jornalista que não gosta de ler e tampouco tem sua própria biblioteca, pois esse profissional, segundo ele, tem a obrigação de conhecer melhor o mundo em que vive.

Hoje, Janer escreve em diversos jornais na internet que dá a ele a liberdade que jamais teria nos de papel, além de não precisar bajular o grande público. Janer é polêmico, mas não por querer ser conhecido, obter fama ou coisa parecida - que aliás diz ter ojeriza a essas coisas - mas, sim, por não ser preso a nenhuma ideologia ou convicção religiosa: "...abandonei Deus lá pelos meus dezesseis, dezessete anos, e senti uma baita sensação de liberdade", afirma com a convicção de quem viveu muito bem a maior parte da vida sendo ateu.

Janer Cristaldo é a essência do homem anti-politicamente correto, no sentido de, com responsabilidade, falar o que pensa sobre qual for o assunto, sem se importar com as reações adversas e o ranger dos dentes daqueles que crêem nos objetos de suas críticas.

Portanto, o que o leitor verá a seguir são análises sérias e contundentes de um homem que tem o que dizer, em contrapartida dos papagaios que encontramos aos montes arrotando a sabedoria alheia, por não ter a capacidade de pensar por si mesmo.

Atualmente a religião Católica, que é a mais praticada no Brasil, parece estar meio sem rumo. Antigamente tínhamos o conhecimento muito vinculado aos colégios católicos, além dos grande filósofos da Igreja como São Tomás, Santo Agostinho etc. O que aconteceu para que a Igreja Católica perdesse esse status de produtora de grandes pensadores?

A meu ver, hoje não há grandes pensadores, nem dentro nem fora da Igreja. É como se os antigos tivessem esgotado todas as formas de enquadrar o ser humano e a realidade, e não restasse aos contemporâneos senão papagueá-los. No campo da filosofia ocorre a mesma coisa. Não se vê mais surgir Sócrates, Kants ou Descartes. O que surgem são repetidores confusos.

Que mais pode acrescentar a Igreja ao que disseram os antigos doutores? Além do mais, a Igreja tem uma espécie de AI-5, o dogma, que inibe todo pensamento. Católico algum pode negar o dogma. Até mesmo um marxistóide como Leonardo Boff tem de engolir a virgindade de Maria, tanto que ele escreveu um livrinho, A Ave Maria - o Feminino e o Espírito Santo, endossando esse fenômeno típico de certos pulgões da lavoura, a partenogênese. O pensador católico tem também de engolir que o pão consagrado não é mais pão, mas carne, e o vinho consagrado não é mais vinho, mas sangue. Mas atenção: pão e vinho não são símbolos da carne e do sangue, mas a própria carne e sangue. Ou seja, todo católico é no fundo um canibal ou hematófago. Impossível pensar a partir de dogmas.

Só poderia surgir algum pensamento na Igreja no momento em que esta abandonasse o dogma. E não só o dogma, mas também boa parte dos livros do Antigo Testamento, e mais alguns do Novo, particularmente aqueles que defendem genocídio, massacres, escravidão. Que esses livros permaneçam como documentos históricos, muito bem. Mas deveriam ser eliminados do corpo doutrinário de uma religião contemporânea, particularmente de uma religião que se pretende defensora dos direitos humanos.

Embora o sr. seja ateu, deve concordar a base moral dos últimos dois milênios da humanidade foi erguida sobre os ensinamentos judaico-cristãos. Como o sr. vê os ataques mútuos entre ideologias e religiões, principalmente no século XX?

Em primeiro lugar, vamos acabar com essa história de sr. Até parece que tu és mais jovem que eu (risos). Continuando: vocês falam na base moral da humanidade. Da humanidade, não. Mas do Ocidente, pois no Oriente a realidade é outra. Mesmo assim, a esses elementos judaico-cristãos se deve acrescentar o legado greco-romano. Juntem-se esses ingredientes todos e temos o que se convencionou chamar de Ocidente. Quanto aos ataques mútuos, estes decorrem do problema que já apontei, o dogma. Aliás, antes de serem mútuos, são internos. A negação dos dogmas provocou cismas, perseguições, massacres, fogueiras.

Depois, surge o problema do monoteísmo, a origem da maior parte das guerras. Com tanta pedra no deserto, Maomé inventou de subir aos céus a partir de uma rocha sagrada para os judeus. Esta história é curiosa. No espaço de uma noite, Maomé voou de Meca a Jerusalém, montado em uma mula alada chamada Burak, com cabeça de mulher e rabo de pavão. Lá, da rocha onde Abrahão iria sacrificar Isaac, subiu ao céu para receber a revelação. Toda pretensão árabe a Jerusalém, todo o atual derramamento de sangue no Oriente Médio, tem no fundo esta lenda estúpida. Árabes e judeus até hoje estão se matando em função da luta pelas mentes de dois deuses ciumentos, Alá e Jeová. Católicos e protestantes estão se entredevorando na Irlanda, shiitas e sunitas se massacram no mundo islâmico, cristãos e muçulmanos se mataram com gosto nas recentes guerras iugoslavas. Melhor o antigo mundo grego. Os deuses eram tantos que soaria ridículo um deles se declarar como único.

Qual o seu conceito de Deus?

Não tenho conceito algum de deus. Se tivesse, seria um crente. Tenho, isto sim, um conceito da idéia de deus. Esta idéia responde, de forma primitiva, é verdade, aos mais profundos anseios humanos. Primeiro, serviu como tentativa de explicar o inexplicável. A medida em que o homem desenvolvia seu conhecimento, esta idéia foi sendo relegada a um segundo plano. Quando a física, a química, a biologia começaram a tornar o universo compreensível, deus foi se reduzindo à sua insignificância. Isto permite que, no final do XIX, Nietzsche proclame: Deus morreu. Verdade que o alemão se enganava. As multidões contemporâneas, cada vez mais famintas de misticismo, reduziram o brado de Nietzsche a um ingênuo wishfull thinking.

Hoje, Deus é uma espécie de esperança para as grandes massas incultas. Aliás, desconfio que as pessoas que dizem crer em Deus, pouco estão se importando com o tal de Deus. O que importa realmente é a transcendência da própria alminha. Encontramos isto mesmo no universo pagão. Que eram os deuses lares, manes e penates romanos, senão reencarnações dos próprios antepassados? O homem que cultuava seus lares estava em verdade cultuando seus mortos. A família era mais sólida naquele mundo pagão. A progênie era uma benção e a infertilidade uma maldição. Quem não procriasse, uma vez morto não teria quem lhe oferecesse os manjares que agradam aos lares.

O ser humano é um bicho que se viciou com a vida, aspira ardentemente à eternidade. O que, se pensarmos bem, é um grande engodo. Se uma vida já cansa, imagina ser eterno. Deus ainda tem algum prestígio porque promete vida post-mortem, paraíso ou inferno conforme os méritos do cliente. Se um deus dissesse: “olha, te comporta como quiseres, não tenho nada a ver com isso, afinal depois da morte não existe nada mesmo”, é claro que esse deus não teria Ibope. Eu ousaria avançar que, no fundo, ninguém crê em Deus. Prova disto é o pavor dos crentes na hora da morte. Ora, a morte propicia o encontro com Deus. Deveria ser ardentemente desejada. Mas não é isto que ocorre. Na hora do jesus-está-chamando, até mesmo o papa busca medicina de ponta. Em A Peste, pela voz do padre Panélou, Camus fala de antigos cristãos que se envolviam em lençóis usados pelos pestíferos, para morrer depressa e mais depressa se encontrarem com Deus. Este tipo de cristão não existe mais.

Alguns pensadores - e até o senso comum - costuma associar a crença em Deus a manutenção de comportamentos éticos (os dez mandamentos, por exemplo). O escritor Dostoievski chegou a afirmar que, se Deus não existe, tudo é permitido. Há, no entanto, diversas interpretações para tal frase da mesma forma que parte da filosofia ergueu uma ética sem Deus. Uma pessoa, enfim, pode ter uma vida de virtudes sem Deus, sem esperar as recompensas transcendentais que as religiões oferecem? Qual a sua posição diante de tal dilema?

Vamos aos fatos. Em primeiro lugar, Dostoievski nunca afirmou isso. Se alguém afirmou, teria sido Ivan Karamazov, um de seus personagens. Não se pode confundir personagem com autor. Em segundo lugar, Ivan tampouco afirmou isso. Quem o afirmou foi Sartre, ao escrever que o existencialismo francês estava fundamentado no argumento de Ivan Karamazov, de que se Deus não existe, tudo é permitido. Os fatos são um pouco diferentes. Em verdade, Ivan conclui que se Deus não existe, não existe imortalidade. E “se não existe imortalidade, não existe virtude”. O que, aliás, confirma minha tese: o que preocupa realmente as pessoas é a transcendência.

Para efeitos de raciocínio, admitamos a proposição “se Deus não existe, tudo é permitido”. É uma proposição safada. Dita por um libertino, significaria que tudo é permitido mesmo, já que Deus não existe. Elimina-se qualquer ética, como se ética dependesse da existência de Deus e não de um acordo entre homens. Dita por um crente, é um alerta: cuidado, se Deus não existe, tudo é permitido. Para que tudo não seja permitido, é preciso que Deus exista. Mas de que deus fala quem assim fala? É bom que lembrar que, no universo do monoteísmo, os deuses são vários. Mesmo na Bíblia não existe um só. A que deus se referem esses pensadores e o tal de senso comum? Ao que não só permite, mas também ordena guerras, massacres, pestes e catástrofes? Ou àquele outro que fala em amor e perdão? É bom ainda lembrar que este deus amoroso do Novo Testamento, segundo o Apocalipse, deve voltar a ferro e fogo para fazer tábula rasa do planetinha. Pela primeira vez, nos textos sagrados, Cristo monta um cavalo, arma de guerra.

Quanto aos Dez Mandamentos: estamos naquele período histórico em que religião não se distingue de legislação, onde ainda não há Estado mas apenas um poder religioso. Ora, isto faz mais de três mil anos. De lá para cá, o homem ocidental foi suficientemente sensato para separar as duas coisas. Uma das grandes confusões de nossos dias é a falta de distinção entre preceito religioso, preceito ético e lei. Lei deve ser cumprida, sob pena de sanção. Preceito ético pode ser cumprido ou não, depende do conceito de ética de cada um. Pode até ocorrer alguma sanção da comunidade, em caso de transgressão, mas esta sanção não tem o aval do Estado, nem pode ser exercida através de força policial. Quanto ao preceito religioso, este deve ser cumprido apenas pela comunidade que crê naquela religião. Ou pelo menos assim deveria ser. Que os cristãos considerem pecado o aborto ou o homossexualismo, isto é um problema que diz respeito apenas à comunidade cristã. Tal condenação não pode ser imposta a um Estado laico, como pretendem os papistas.

Pessoalmente, não preciso de Deus nem de recompensas transcendentais para ser honesto. E penso que não somos poucos os que assim pensamos.

Mas no Brasil a questão religiosa é complicada. A maioria é católica, porém, nada impede que freqüentem terrenos de candomblé ou até sigam as doutrinas espíritas de Kardec, que aliás, o Brasil é um dos únicos países que ainda levam à sério a "ciência-religião" deste francês. Na sua opinião por que há esse desespero em querer salvar a alma? Neste sentindo o ateu é mais tranqüilo, já que sabe que seu fim não é a eternidade proposta pelas religiões?

O candomblé se deve à porção africana do Brasil. Há toda uma população que não se reconhece no deus e santos brancos europeus. Apela então às tradições animistas africanas. É uma religião de negros e pobres, mas que gera muito dinheiro e poder, particularmente na Bahia. Até um comunista empedernido como Jorge Amado achou melhor fazer o jogo dos orixás. Quanto ao espiritismo, foi uma fórmula encontrada por um setor das elites brasileiras para escapar ao catolicismo sem cair no animismo. O kardecismo tem suas origens no mesmerismo, doutrina proposta pelo austríaco Franz Anton Mesmer, para quem a alma humana ultrapassava os limites do corpo e atuava fora dele. Que o corpo humano emitia radiações, compostas de elementos materiais, que seriam os veículos transmissores da ação da alma e que continham forças vitais. Kardec - em verdade Denizard Rivail - aproveitou esses elementos, mesclou-os com uma teoria da reencarnação e estabeleceu bate-papos com os espíritos através de mesas girantes. Não sei se já observaste, mas muita gente que perde um filho ou pessoa próxima, logo é assediada pelos espíritas. Na ânsia de transcendência, de comunicação post-mortem, há pessoas que caem no engodo. É uma variante mais pragmática da vigarice da vida além-túmulo dos cristãos.

Kardec está sepultado no Père Lachaise, em Paris. Multidões de brasileiros visitam sua tumba. Se fores perguntar a um francês quem foi Kardec, ele não te dirá nada, pois nem sabe de quem se trata.

Eu não saberia dizer nem onde nem quando surge essa idéia estúpida de salvar a própria alma, aliás tão estúpida quando a idéia de alma. Isto é tarefa para historiadores, mas obviamente o cristianismo não é inocente neste imbroglio. Claro que o ateu é um homem mais tranqüilo, ele dispensa muletas espirituais. Mas atenção: há dois tipos de ateus. Há aquele que simplesmente não acredita em Deus nem na craca metafísica que vem junto com essa idéia, nem faz proselitismo. Existe ainda um outro, o ateu militante, aquele que procura adeptos para reforçar sua descrença. Este, na verdade, está doidinho para acreditar em deus. Mal um deus qualquer lhe pisca um olho numa esquina, ele adere de corpo e alma à nova crença.

Então Marx acertou em dizer que "a religião é o ópio do povo"?

Ópio do povo e mais um pouco. Fonte de renda e poder para elites, atraso para o pensamento e para a ciência, um peso inútil para o indivíduo. No caso da Igreja Católica, é um tremendo fator de miséria para o Terceiro Mundo. O Vaticano tem assento na ONU e sempre se opõe às políticas de controle da natalidade. Fator de insalubridade, também. Toda vez que as autoridades falam em preservativos para conter a Aids, não falta padre ou bispo que se manifeste contra. O Congo, que tem uma população de 52% de católicos, está sendo arrasado pelo HIV, graças aos padres que se opõem ao preservativo. Estas políticas merecem um só adjetivo: criminosas.

Vamos falar de literatura. Na sua opinião, qual o valor dos livros na vida de uma pessoa? E quais livros uma pessoa jamais deveria deixar de ler?

Sem livro, não há cultura. Vê os índios, por exemplo. Há tribos ágrafas no Brasil que continuam chafurdando no paleolítico, para alegria e sustento dos antropólogos. O livro, primeiramente, com Gutenberg, e depois a democratização do livro, com Aldus Manutius, foi uma poderosa ferramenta do desenvolvimento humano. O livro liberta, nos livra de idéias preconcebidas, de crendices e religiões. Ensina e humaniza. Tem mais: se não for instrumento de libertação, de informação e de degustação estética, para nada serve. Curiosamente, um dos primeiros livros que me ajudou a jogar fora idéias religiosas, foi a Bíblia. Não há fé que resista a uma leitura atenta da Bíblia. Lendo-a com atenção, vê-se que deus é uma criação humana, e seu conceito depende de época e geografia.

Mas o livro também tiraniza. Já deves ter notado o poder de que se imbui um desses pregadores de rua, ou mesmo de púlpito, ao brandir uma bíblia. Eles se apegam apenas a alguns aspectos da bíblia, os que mais convêm a seus dogmatismos, e ameaçam a clientela com inferno, fogo e sofrimento eterno. Não por acaso, o livro predileto deles é o Apocalipse.

Quanto aos livros que uma pessoa jamais deixaria de ler, a pergunta é complicada. Eu diria que, ocidentais, todos temos de dar uma olhadela em Platão e seus Diálogos. O Quixote é outro grande livro, mas atenção: é preciso que o leitor goste da ironia literária, da Espanha e, principalmente, da antiga Espanha. Sem isto, o Quixote pode tornar-se uma leitura maçante. As Viagens de Gulliver, de Swift, este tremendo libelo contra as instituições humanas, é outro livro importante. 1984, de Orwell, é fundamental para conhecermos o debate do século passado. Para se ter uma idéia das instituições do Ocidente, eu sugeriria A Cidade Antiga, de Fustel de Coulanges. Para bem entender os fundamentos de nossa cultura, importante ler A História das Origens do Cristianismo, de Ernest Renan. São sete volumes, mas é leitura que prende. Particularmente para quem gosta de viajar, é uma visita - ou revisita - a Jerusalém e Roma antigas.

Em matéria de poesia, penso que Fernando Pessoa é o grande poeta do século passado, apesar de a universidade tentar destruí-lo com suas análises teóricas. E sou apaixonado por José Hernández, este poeta maior da América Latina, tão pouco conhecido no Brasil. Martín Fierro é certamente o poema que mais adoro. A propósito, se alguém não o conhece, aqui está: http://www.literatura.org/Fierro.

Mas isso são as minhas leituras. Um outro leitor certamente proporia outras. A leitura da Bíblia também é fundamental, não posso considerar culto quem não a tenha lido. Mas é preciso lê-la sem fé, sem idéias preconcebidas, ou então a leitura só serve para reforçar fanatismos.

A literatura e a intelectualidade já estiveram muito ligadas à boemia, principalmente nas décadas de 1920 e 1930, em que muitas obras "nasceram" em meio a conversas de bar. Você não acha que existe hoje uma certa predominância do meio acadêmico no processo de produção literária? O escritor Gore Vidal acha, por exemplo, que a literatura norte-americana praticamente transferiu-se para a universidade, confundindo-se com a crítica literária. Não há uma separação muito abissal entre o escritor que narra as coisas do cotidiano dos que fazem sua literatura com base na cultura adquirida na universidade?

Considero a literatura como uma expressão da revolta. Ou a literatura contesta a própria época, ou é mero entretenimento. A universidade é uma instituição fortemente ancorada no stablishment. Quando a universidade adota uma obra, é porque essa obra já perdeu sua força de contestação.

O suporte da indústria do livro, hoje, é a universidade. Se um dia o livro foi um instrumento sem o qual a universidade não podia existir, hoje a universidade é um instrumento sem o qual a indústria do livro perde seu vigor. O que era fim, a aquisição de saber através da universidade, se tornou meio para sustentação de um comércio. E o que era meio, o livro como instrumento de deleite espiritual ou comunicação do saber, tornou-se fim, uma mercadoria como qualquer outra, para alegria de editores e massagens no ego de escritores com boas relações junto ao MEC e crítica acadêmica. Claro que estou falando da área humanística da universidade, e particularmente dos cursos de Letras. Na área científica e tecnológica encontramos mais seriedade.

A universidade está até mesmo determinando como deve ser feita a literatura. Há milhares de escritores escrevendo para agradar acadêmicos. Mais ainda: a universidade preserva em formol autores que há muito deveriam estar sepultados. Os acadêmicos criaram um mercado artificial, que chamo de indústria textil - textil assim mesmo, sem acento, a indústria do texto - e só assim certos defuntos ainda nos chateiam. Machado de Assis é um deles. Duvido que algum editor apostasse na publicação do Machado se este não fosse leitura obrigatória de vestibulares e ementas universitárias. Mas Machado até que tem algum valor, como referência histórica. Que mais não seja, como cronista de sua época. O pepino são as clarices lispector da vida, as lígias telles, os guimarães rosas. São elefantes brancos que estariam repousando em paz nos cemitérios de paquidermes, não fosse a venda forçada imposta pela universidade. Guimarães Rosa, por exemplo. Todo mundo cita e ninguém lê. Não fosse a pressão universitária, jamais seria reeditado. Além disso, em Grande Sertões, perdeu uma excelente oportunidade de escrever o grande romance homossexual brasileiro. Diadorim era mulher. A família está salva.

Certa vez, em uma palestra na PUC de Porto Alegre, afirmei mais ou menos isso. Após a palestra, uma professora me procurou. Disse-me sentir-se gratificada ao ouvir aquilo, pois ela não suportava a Clarice Lispector, seus alunos abominavam a Clarice Lispector e ela tinha de impor a Clarice Lispector a seus alunos. O que me espanta em tudo isto é que os universitários engulam calados estas imposições curriculares, sem nenhum protesto, nenhuma proposta de mudança de currículo. Há uma indústria estatal no país, títulos que são impostos à rede escolar por compadrismos dos autores ou herdeiros de autores junto ao MEC ou universidades. A audácia que se atribui aos jovens é mero chavão. Os jovens são covardes e, de um modo geral, engolem tudo que se lhes serve.

Denuncia-se muito a corrupção no governo neste país, mas ninguém ousa denunciar a corrupção no santo dos santos, a universidade. Lygia Fagundes Telles, por exemplo, que participou de uma comissão que escolheria 300 títulos a serem comprados pelo Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação, teve o desplante de sugerir um livro seu, Ciranda de Pedra para a lista dos trezentos. Do dia para a noite, sua cotação subiu nesta suspeita bolsa de valores. Segundo a revista Veja, seu passe foi comprado pela editora Rocco, para a publicação de doze livros, por 500 mil reais. Ora, isto é corrupção.