¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, junho 13, 2012
 
REPÓRTER VÊ MODA
EM VELHO HÁBITO



Desde os anos 70 defendo o uso da bicicleta como meio de transporte urbano. Na época, fui tomado como louco. Não era louco e muito menos original. Eu já flanara por Amsterdã, onde fiquei fascinado com a quantidade de bicicletas e principalmente com aquelas velhotas de 60 e 70 anos pedalando com gosto. E vivera em Estocolmo, onde o uso da bicicleta já era bastante difundido.

No início dos setenta, os suecos empunharam uma bandeira que soava tão utópica quanto insensata: Stockholm ska vara bilfri. Em bom português: Estocolmo deve ser livre de carros. E instituíram um dia bilfri, isto é, sem carros na cidade. Claro que tal campanha só poderia ter tido início em país rico, onde o carro já não constitui distintivo social. Foram necessárias três boas décadas para que o continente percebesse o bom senso nórdico. Várias cidades em vários países europeus celebram atualmente, em meados de setembro, o dia bilfri dos suecos. "Na cidade, sem meu carro" - é a divisa dos manifestantes. Creio que até houve, acho que em São Paulo, uma tentativa canhestra de organizar um dia igual. Claro que deu em nada.

Falar em cidade livre de carros no Brasil, na época, era visto não só como inviável, mas também como insensato. "O automóvel não é só um meio de transporte. É um símbolo de sucesso, prestígio, poder, liberdade. É um deus, um objeto de admiração. Não é aquilo que ele oferece objetivamente que mais importa, mas aquilo que ele representa no imaginário coletivo", disse no início desta década Álvaro de Aquino e Silva Gullo, professor de ciências sociais da Universidade de São Paulo, em entrevista à Folha de São Paulo.

"O fascínio pelo automóvel leva a exageros. A maior ofensa a um motorista é alguém encostar no carro dele. O pedestre não tem esse mesmo valor", continuava o professor. Bicicleta não dava status algum. Era transporte de operário, que não tinha grana para comprar um carro.

Hoje as coisas mudaram um pouco. Há grupos aguerridos de ciclistas lutando contra os carros, como se todo proprietário de carro fosse um anti-social a ser banido da urbe. Ora, nem tanto ao mar nem tanto à terra. Enquanto as grandes cidades não se munirem de uma farta rede de ciclovias, pedalar é algo próximo ao suicídio. Sem falar que certas cidades, por sua topografia, são hostis aos ciclistas. Você não vê muitas bicicletas em Praga, Roma ou Lisboa, por exemplo. Os morros tornam as magrelas desconfortáveis e exaustivas.

Pobre tem uma necessidade patológica de posar de rico. Senti brutalmente isto há quase duas décadas, em uma manhã de verão em Umeå, pequena cidade sueca, no fundo do golfo de Bótnia. A Suécia, é bom lembrar, tem 8,8 milhões de habitantes, uma força de trabalho de 4,5 milhões de homens e uma renda per capita de 19.700 dólares. Dado o alto custo de vida naqueles nortes, para um Svensson, passar férias nas ilhas gregas ou Canárias é refresco.

Estava em Umeå, dizia. Mais precisamente na Storegatan. (Toda cidade sueca tem uma Storegatan, geralmente a rua principal). Era sábado e os bares estavam repletos de suecos e suecas, desfrutando o tímido sol do Ártico. Os habitués, para os quais uma Mercedes ou BMW não constituiria grande rombo no orçamento, haviam deixado em casa seus carros e chegavam aos bebedouros em bicicletas. Crianças, jovens, velhos e velhas, todos deslizando mansamente pela Storegatan, sem que o ruído de nenhum motor perturbasse a paz sabática da aldeia. Em meio aos bares, agências de turismo anunciavam sol barato no Egeu ou no Mediterrâneo. Para qualquer um daqueles suecos, estar três ou quatro horas depois refestelado sob o sol helênico era questão apenas de puxar um cartão de crédito e largar a bicicleta em casa.

Difícil não evocar, naquela manhã de sábado, este ridículo país em que me coube viver. Meus vizinhos retiram da garagem seus carros do ano, para percorrer dois ou três quarteirões e estacioná-los junto aos botecos chinfrins de meu bairro. Mesmo diabéticos ou cardíacos, condições que exigem caminhadas e exercícios físicos, não conseguem libertar-se da necessidade de ostentar status. Demora mais circular pelo quarteirão à procura de uma vaga onde estacionar do que ir até lá andando? Pode ser. Mas chegar ao bar a pé ou de bicicleta, seria sinal de desqualificação social.

Depois, a apreensão constante, um olho no copo e outro na carroça, questão de cuidar se algum outro carro ou mendigo não tromba ou risca o precioso símbolo. Aos fins de semana, rumam ao litoral. Como todos parecem ter tido a mesma idéia, rodam às vezes cinco horas para fazer cem quilômetros. O mesmo tempo que o pacato ciclista do fundo do golfo de Bótnia leva para chegar a Mikonos ou Gran Canaria.

Aquilo que era hábito secular em Amsterdã, foi pouco a pouco se difundindo pela Europa toda, a começar pela Escandinávia. A prática desceu do norte para o sul, e hoje até mesmo Paris, Barcelona e Madri têm suas redes de bicicletas à disposição de seus habitantes.

Marinheiro de primeira viagem tem sempre algo de patético. Mal vê um rochedo, pensa ter descoberto a América. É o que faz a repórter Luciana Rangel, em Veja, ao comentar o uso de bicicletas em Berlim.

“A queda do Muro de Berlim em 1989 acabou ajudando a derrubar o preconceito e a pavimentar um novo caminho para os ciclistas e toda forma de transporte mais saudável e ecologicamente correto. O resultado é que, nos dias de hoje, pedalar tornou-se “chique”, e a bicicleta foi incorporada pelas políticas públicas, que dão preferência a um transporte que, em troca, ajuda a cidade a ser mais limpa, silenciosa e menos engarrafada”.

Tornou-se chique coisa nenhuma. Há décadas os berlinenses usam bicicletas, e isso desde muito antes da queda do Muro. Pedalam não por ser chique, mas por ser saudável e inteligente. Os europeus de modo geral há muito descobriram que o automóvel não é exatamente a melhor solução para as cidades.

“O que os alemães estão dispostos a investir para pedalar também mostra que a moda é um mercado em crescimento.” – diz a moça. Pelo jeito, desconhece Berlim. Lembro que nos 70, então marinheiro de primeira viagem, eu pagava vexame na Berlim ocidental, ao caminhar pela faixa dos ciclistas, sempre junto a dos pedestres. Maturrango, eu não distinguia uma da outra e era quase atropelado pelas bicicletas, que me atacavam em silêncio. Claro que as ciclovias aumentaram de lá para cá, como estão aumentando em toda Europa.

Mas isto nada tem a ver com moda.