¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, julho 24, 2012
 
A OBJEÇÃO DE LAÍS LEGG


De Laís Legg, psiquiatra e boa amiga, recebo:

Oi, Janer:

Não li a matéria da Folha, mas sei lá como os leigos trataram do assunto. Mas a oniomania nada mais é que uma faceta do portador de Transtorno Afetivo Bipolar (TAB), antigamente denominado de Psicose Maníaco-depressiva (PMD). É um transtorno psiquiátrico grave, só perdendo para a esquizofrenia.

Devido aos desarranjos bioquímicos de substâncias cerebrais (catecolaminas), a pobre criatura oscila entre estado onipotente e impotente, permanecendo pouco tempo no estado potente, isto é, de poder fazer as coisas normalmente. A doença é difícil de tratar (30% dos portadores não apresentam resposta adequada aos psicofármacos) e causa grande sofrimento ao portador e seus familiares.

Quando em estado de onipotência (por causas químicas), o portador fica hiperssexualizado, dorme muito pouco, tem idéias mirabolantes de enriquecimento, fuga de idéias, taquilalismo e taquipsiquismo. Eles são a alegria das lojas, agiotas, bancos, supermercados e shoppings, pois gastam sem medir consequências. Com o advento do cartão de crédito, o sintoma de prodigalidade expandiu-se de forma assustadora, pois ficou mais fácil comprar. O final de quase todos é a interdição judicial, pois acabam com o patrimônio familiar.

O lado oposto da fase maníaca é a depressão profunda. Os portadores de TAB são os que mais se suicidam, no mundo. Cerca de um milhão de pessoas se suicidam, por ano, segundo a OMS. E a maioria são portadores de TAB. Muitos são, também, homicidas, devido ao descontrole do impulso.

O tratamento é árduo, com necessidade de combinações farmacológicas do tipo estabilizadores do humor, antipsicóticos, antidepressivos e indutores do sono e, muitas vezes, é necessário empregar a ECT (eletroconvulsoterapia – o popular eletrochoque) para que se possa reverter o quadro. Há, também, os cicladores rápidos, aqueles que apresentam estado maníaco e estado depressivo num mesmo dia. Também há os que apresentam virada maníaca, isto é, quando em depressão profunda, recebem medicação antidepressiva e vão rapidamente para o estado maníaco, deixando o médico louco. E há necessidade de muitas internações psiquiátricas ao longo de suas vidas.

Espero ter ajudado um pouco, pois sei que este mundo obscuro é pouco conhecido fora do âmbito da medicina.

Bjs,
Laís


Touché, Laís!

Não vou discordar. Mas não se confunda a doença com mania de ostentação. O que mais tenho visto em torno a mim são pessoas comprando o que não podem para ostentar um status que não têm. Contraem dívidas estratosféricas e depois tratam de “rolar” o devido. Na hora de “rolar”, são muito racionais e saudáveis. Mencionei o caso da subprime nos EUA. Seriam os “ninjas” (no income, no job, no assets) todos doentes mentais? Se assim foi, a crise de 2007 não passou de uma questão de saúde psíquica nacional.

Os imigrantes, que pouco ou nada compravam em seus países – pelo simples fato de que não tinham como pagar – e na Espanha passaram a comprar apartamentos de 500 mil euros, teriam contraído a doença ao migrar? Serão oniômanos os europeus todos que vivem pendurados no cartão de crédito? Serão os cartões de crédito a origem do mal? Posso alegar a um banco: “Sabe, sr. gerente, aquele empréstimo? Comprei uma lancha e não posso honrá-lo. Mil perdões, sr. gerente. Sou oniômano, nada posso fazer”?

Segundo os juristas, em uma sociedade marcada pelo constante convite ao consumo, “torna-se cada vez mais comum a existência de pessoas cujas despesas referentes a um determinado período habitualmente superam as receitas daquele mesmo período. Partindo-se desta premissa, tem-se que é uma constante o estado de insolvência, ainda que apenas de fato ou transitório, de grande parcela da sociedade. Diante desta constatação faz-se necessário o estabelecimento de critérios objetivos e científicos para que seja possível distinguir, com o maior grau de segurança possível, as pessoas consideradas "pródigas", e com isso sujeitá-las à interdição judicial, visto que serão relativamente incapazes, e aquelas que serão consideradas como "superendividadas", cujo tratamento jurídico será menos severo, ensejando, inclusive, a possibilidade de revisão de contratos e maiores benefícios na negociação de seus débitos”.

Serão os novos oniômanos os antigos pródigos? O Código Civil não contempla o que se chama de oniômanos e tipifica os pródigos como relativamente incapazes (Lei nº 10.406/02). Terão os juízes contemporâneos equiparado os oniômanos aos pródigos? Pode ser. Mas o Código Civil não vê os pródigos como doentes.

Seja como for, a questão gera perguntas. Como a encara o Direito das Obrigações? Se a interdição judicial protege o patrimônio familiar, quem ou o quê protege o credor? Sendo o endividamento um transtorno psiquiátrico grave, este tipo de devedor é legalmente responsável pela dívida? Esta pode ser remida em função da doença? Ou é transferida a pais ou filhos? Como podem se precaver o comércio ou as instituições de crédito deste tipo de doente? Pode a economia de uma nação flutuar ao sabor de doenças psíquicas?

Questões que ficam no ar.

Baci!

Retorna a Laís:

Oi, Janer:

Apenas quis te mostrar que, dentro dos devedores contumazes, existe um percentual de bipolares. Obviamente, há aqueles gastadores que vivem somente para ostentar. Fico arrepiada só em pensar na quantidade de mulheres fúteis que adoram desfilar com bolsas caríssimas ou homens que se sacrificam para ter um carrão.

Por este motivo, abandonei a psiquiatria clínica, pois não tolero burros. Hoje, sou psiquiatra forense e só lido com casos judiciais, preferi me preservar mentalmente. Quanto aos interditados, a coisa só ocorre (quando ocorre) lá pelos 40, 50 anos. E o juiz desfaz os negócios mirabolantes do momento, o que passou, passou. Para teres idéia, periciei um usuário de “crack”, declarei-o incapaz para o trabalho de forma definitiva e sugeri a interdição judicial dele. A família não aceitou a interdição, ele foi aposentado por invalidez e vendeu os R$ 40.000,00 que iria receber nos meses seguintes por R$ 9.000,00 (sim, existem atravessadores que só vivem disso – a maioria advogados) e foi direto para a boca de fumo, onde torrou todo o dinheiro. A mãe procurou o juiz, este desfez a venda (considerando a minha indicação de interdição) e os R$ 9.000,00 foram para a estratosfera, o esperto se deu mal. Também deves saber que os traficantes ficam com centenas de cartões de benefícios previdenciários dos usuários aposentados ou em benefício INSS – é o governo financiando, diretamente, o tráfico de drogas. Os usuários? São os bipolares que te falei.

Como vemos, a teia é complexa. Tens toda a razão naquilo que falas, mas eu também te mostro outro lado. E o vigarista se dá bem.

Bjs
Laís