¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, agosto 14, 2012
 
Sobre os prazeres da teologia:
QUANDO UM I DIVIDE A IGREJA



Volto a meus prazeres diletos, as discussões teológicas. Em Marcos, por exemplo, Cristo morre às 9h da manhã, no dia do Pessach, a manhã seguinte à refeição do Pessach. Em João, Cristo morre um dia antes, no dia da preparação do Pessach, em algum momento depois do meio-dia. Isto é o de menos. Bart D. Ehrman, em quem colho estas incongruências, apresenta uma bateria de outras que mostram a discrepância dos quatro evangelhos. Em Jesus, interrupted, traduzido no Brasil com o rebarbativo título de Quem foi Jesus? Quem Jesus não foi?, o autor pergunta:

- Quem realmente foi ao túmulo? Apenas Maria (João 20:1)? Maria e outra Maria (Mateus 28:1)? Maria Madalena, Maria mãe de Tiago e Salomé (Marcos 16:1)? Ou mulheres que tinham acompanhado Jesus da Galiléia a Jerusalém – possivelmente Maria Madalena, Joana, Maria mãe de Tiago e “outras mulheres” (Luca 24:1 ver 23:55)? A pedra realmente havia sido roladas da entrada da tumbas (como em Marcos 16:4), ou foi rolada por um anjo quando as mulheres estavam lá (Mateus 28:2)? Quem ou o quê elas viram lá? Um anjo (Mateus 28:5)? Um homem jovem (Marcos 16:5)? Dois homens (Lucas 24:4)? Ou nada e ninguém (João)? E o que foi dito a elas? Para mandar os discípulos irem “para a Galiléia”, onde Jesus os encontraria (Marcos 16:7)? Ou para recordar que Jesus tinha dito a elas “enquanto estavam na Galiléia” que teria de morrer e nascer novamente (Lucas 24:7) Depois as mulheres contam aos discípulos o que viram e ouviram (Mateus 28:8) ou não contam nada a ninguém (Marcos 16:8)? Se elas contam a alguém, a quem é? Aos 11 discípulos (Mateus 28:8)? Aos 11 discípulos e a outras pessoas (Lucas 24:8)? A Simão Pedro e a outro discípulo não identificado (João 20:29)? Qual é a reação dos discípulos? Não reagem, porque o próprio Jesus aparece imediatamente a eles (Mateus 20:9)? Não acreditam nas mulheres, porque parece um “desvario” (Lucas 24:11)? Ou vão até a tumba ver com os próprios olhos (João 20:3)?

E durma-se com um barulho destes.

Ehrman tem uma trajetória curiosa. PH.D. em teologia pela Universidade de Princeton e professor de estudos religiosos na Universidade da Carolina do Norte, saiu de biblioteca em biblioteca mundo afora, para conferir não os originais dos textos sagrados, que não existem mais – nem mesmo suas cópias, que tampouco existem – mas as cópias de cópias de cópias que ainda restam. Disto resultou um primeiro livro, Misquoting Jesus: the Story behind Who changed the Bible and Why, traduzido como O que Jesus disse? O que Jesus não disse?.

Se antes acreditava que a Bíblia era a palavra de Deus, Ehrman descobriu que sua elaboração era humana e muito humana – com todas as deficiências de uma obra humana. E perdeu a fé. Seu itinerário foi mais ou menos o meu. Perdi a fé lendo a Bíblia. Mas não perdi meu tempo em bibliotecas comparando cópias antigas. Bastou-me o texto, mesmo traduzido.

Ehrman propõe uma leitura não vertical da Bíblia, começando no início de cada livro e indo até o fim. Mas uma leitura horizontal, isto é, você lê uma história em um dos evangelhos, depois a mesma história em outro Evangelho, como se tivessem sido escritas lado a lado, em colunas. E você compara as histórias cuidadosamente, em seus detalhes. Não há fé que resista a tal leitura. A Bíblia torna-se um livro muito humano, organizado por editores sem preocupação alguma com a coerência.

Ainda há pouco, falei sobre os corpos de santos que foram ressuscitados, segundo Mateus, por ocasião da crucificação do Cristo. Os demais evangelistas não voltam a falar deles e o episódio até hoje constitui um problema para os teólogos católicos. A que título foram ressuscitados? Que foi feito deles após a ressurreição?

Mas este não é o problema maior, e sim um outro, que passa despercebido ao leitor apressado. Se foram ressuscitados durante a crucificação, isto também significa que ressuscitaram três dias antes do Cristo. Como fica então Paulo com seu brado triunfante na primeira epístola aos Coríntios? “Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?” O fanático judeu sabe que sua pregação tem suas bases no absurdo: “Mas se não há ressurreição de mortos, também Cristo não foi ressuscitado. E, se Cristo não foi ressuscitado, é vã a vossa fé”.

Acontece que as epístolas de Paulo foram escritas antes dos Evangelhos. I Coríntios foi escrita em Éfeso, cerca de 55 d.C. E Paulo sequer suspeitava que Marcos, mais tarde, iria escrever tal disparate. (Seu evangelho foi escrito em Roma, talvez entre 75-80 d. C. Para a Igreja Católica, entre 60-70 d.C. Mesmo assim, após as epístolas paulinas). Pois se muitos ressuscitaram antes de Cristo, a ressurreição do crucificado estava longe de ser a primeira vitória contra a morte.

Em Marcos também está a ressurreição de uma criança por Cristo: cumi, Talita, cumi. Em João, autor do último dos Evangelhos canônicos (finais da 1ª década do século II), Cristo ressuscita Lázaro. Quer dizer, ressurreição era algo mais ou menos banal na época. Só que Paulo, ao que tudo indica, não fora informado.

O problema dos 27 textos do Novo Testamento é que foram compilados mais tarde, em 367 d.C., por Atanásio, o bispo de Alexandria, no Egito. Ao escrever as epístolas ou os evangelhos, tanto Paulo como os evangelistas ignoravam que seriam mais tarde reunidos em um só volume. Cada um foi contando sua versão do Cristo, sem importar-se com as demais versões, o que aliás nem poderiam fazê-lo. Daí que o Novo Testamento – como também o Antigo – às vezes está mais para samba do crioulo doido do que para documento histórico.

Teologia é coisa séria. Segundo o Evangelho de João, o Espírito Santo procede do Pai. Assim o entendeu o Credo niceno-constantinopolitano, que no ano de 381 já repetia esta profissão de fé. Sabe-se lá porque cargas d'água, os romanos acrescentaram ao Credo a partícula que, que corresponde ao nosso e. Daí filioque, ou seja, o Espírito procede do Pai e do Filho. Os cristãos orientais acusaram então os latinos de haver alterado os símbolos da fé. Em 444, Cirilo da Alexandria afirmava que o "Espírito é o Espírito de Deus Pai e, ao mesmo tempo, Espírito do Filho, saindo substancialmente de ambos simultaneamente, isto é, derramado pelo Pai a partir do Filho". Inúmeros teólogos eram do mesmo aviso. Mas os cristãos gregos não conseguiam aceitar a polêmica conjunção, o e (que, em latim).

O caldo engrossou quando o Concílio de Toledo, em 589, oficializou o símbolo da fé com o filioque, e considerou anátema a recusa da crença de que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho. Não bastasse o absurdo conceito do três-em-um - inteligível se levamos em conta a preocupação de fugir ao politeísmo - discutia-se agora a relação de um com os outros dois. E a Igreja partiu-se irremediavelmente em dois, em função de três letrinhas. E dividida permaneceu até hoje, entre Romana e Ortodoxa.

Já foi pior. Houve época em que a Igreja esteve a ponto de cindir-se por uma única letra. No início do século IV– conta-nos Ehrman – na época de Ário, professor cristão da Alexandria, praticamente a Igreja inteira concordava que Jesus era ele mesmo divino, mas que havia apenas um Deus. Mas como exatamente isso funcionava? Como ambos podiam ser Deus?

Ário considerava ter havido um tempo no passado distante antes do qual Cristo não existia. Ele passou a existir em determinado momento. Embora fosse divino, não era igual a Deus Pai; como era o Filho, era subordinado a Deus Pai. Eles não eram “da mesma substância”; eram “similares” em substância.

O oponente mais conhecido a esta tese era Atanásio, justo aquele que seria mais tarde responsável pelo cânone do Novo Testamento. Para Atanásio, o Cristo era feito exatamente da mesma substância – homoousias, em grego - que o Pai. Nada a ver com substância similar – homoiousias. E a Igreja arriscou cindir-se por um i.

Foi quando o imperador Constantino, que havia se convertido ao cristianismo para unificar seu império fragmentado, deu-se conta que uma religião dividida não podia produzir unidade. Convocou então o Concílio de Nicéia, em 325 d. C., que optou pela posição de Atanásio. Há três pessoas em Deus. Elas são distintas umas das outras. Mas cada uma é igualmente Deus. Todas as três são seres eternos. E todas as três são feitas da mesma substância.

Entendeu, ó herege?