¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, setembro 07, 2012
 
LUZES DE ESTRELAS MORTAS


Escrevia eu ontem que a covardia intelectual dos velhos comunistas é a razão pela qual eles ainda existem. Não ousam admitir que toda sua vida foi inútil, senão criminosa, como também suas obras. Isso do ponto de vista individual. Do ponto de vista social, o que formou tais celerados foi uma rígida censura – não traduzida em lei, mas mais eficaz que as leis de qualquer ditadura – imposta pelos detentores da cultura no país. Le fonds de l’air est rouge, diziam os “revolucionários” de 68 em Paris. Entre nós, desde muito antes de 68 o fundo do ar já era vermelho. Livros vitais para a compreensão do século foram proibidos no Brasil. Não pelo governo. Mas pelos donos da cultura nacional.

Comentei também Le Dieu des ténèbres, livro não publicado no Brasil, com o depoimento de seis escritores que abandonaram o comunismo nos anos 50. Dentro do livro, encontrei um recorte com uma resenha de Rachel de Queiroz, publicada no Correio do Povo Porto Alegre), em 26/10/69. Dizia então a escritora:

“Trata-se portanto de um livro que deveria circular amplamente pelo Brasil, mormente agora, quando se sabe, se vê, se proclama e se testemunha que a guerra subversiva está em marcha contra nós. Representa uma obra dessas uma forma inteligente e superior de contra-propaganda muito mais eficiente, me parece, que a simples denúncia ou os chamados “argumentos de autoridade”, ou as objurgatórias de uso comum. Cada depoimento desses traz em si um cheiro inegável de verdade, de experiências vivida, de memória contemporânea; e essa sinceridade paira acima de tudo, transcende até mesmo da mestria profissional do asutores em causa, do envolvimento em que nos poderia trazer a celebridade deles todos, o alto lugar que ocupam nas letras mundiais.

“Minha amiga, a excelente tradutora Ruth Leão, tem tal entusiasmo por essa obra coletiva, que já lhe traduziu um dos capítulos – de Koestler – e está pronta a traduzir o resto, se algum editor se interessar”.

É claro que editor algum se interessou. Naqueles anos, no Brasil era sacrilégio publicar qualquer palavrinha contra o Paizinho dos Povos, como era chamado Stálin. Seus crimes já haviam sido denunciados após as purgas de 35, após a affaire Kravchenko em 49. Seriam logo depois denunciados por Kruschev, em 54. Mas sua aura de santo continuaria intacta entre nós, mesmo décadas mais tarde.

Assim como a Igreja teve seu Index Prohibitorum, as esquerdas tinham também sua listinha de autores proibidos. L'Homme révolté, o mais importante ensaio de Camus, publicado em 51, só surgiu no Brasil no final dos 90, quase meio século depois de editado em Paris, após a Queda do Muro e o desmoronamento do comunismo. Ao chegar ao leitor brasileiro, havia perdido muito de seu sentido, pois já caíra a mais longa ditadura do século.

Hoje, mais que uma obra de combate, L'Homme révolté é o testemunho histórico de um escritor que não se deixou enganar pela utopia soviética. Em todo caso, a polêmica de Camus com d'Astier de la Vigerie, um dos mais vibrantes textos do autor argelino, publicado em suas obras completas, sob o título "Ni Victimes, ni bourreaux", continua solenemente ignorado no Brasil.

Muitos outros foram os livros subtraídos ao leitor brasileiro. Livros que teriam modificado substancialmente os rumos do país, se tivéssemos editores de coragem. Arrolo alguns títulos para o leitor mais curioso. Como passei alguns anos no exterior — sem falar dos que vivia no interior gaúcho, onde raros livros chegam, e sem falar dos anos em que eu sequer vivia — posso cometer algum lapso. Que o leitor melhor informado me corrija.

Um dos mais significativos foi Vers l'autre flamme, do escritor romeno de expressão francesa, Panaïti Istrati. Primeira denúncia do stalinismo, foi publicado na França em 1929 e só reeditado em 1980. Suas Obras Completas foram publicadas pela Gallimard, exceto Vers l'autre flamme, cujos originais levam Romain Rolland, seu padrinho literário em Paris, a aconselhá-lo: "Isto será uma paulada a toda Rússia. Estas páginas são sagradas, elas devem ser consagradas nos arquivos da Revolução Eterna, em seu Livro de Ouro. Nós lhe estimamos ainda mais e lhe veneramos por tê-las escrito. Mas não as publique jamais". Claro que tal livro jamais seria publicado no Brasil.

Arthur Koestler, um dos autores de Le Dieu des ténèbres, é uma outra lacuna injustificável nas edições nacionais. Sua autobiografia está em Arrow in the Blue e The Invisible Writing, uma fascinante viagem intelectual de um homem que perambulou por toda a Europa e pelas ideologias de sua época. Judeu húngaro de cultura cosmopolita, militante sionista e marxista, Koestler viveu em Israel, Moscou, Viena, Paris, Berlim e inclusive participou da Guerra Civil Espanhola. Leituras fundamentais para entender-se o debate ideológico da Europa na primeira metade do século passado, jamais chegaram ao leitor brasileiro.

A biografia clássica do ditador russo, Staline, de Boris Souvarine, publicada em 1939, nem pensar. Outra biografia não menos importante, em dois volumes, é a de Alam B. Ulam, publicada em 1973, nos Estados Unidos. No Brasil, quase criou-se um gênero literário, a literatura laudatória de Castro e Che, que chegava a ter estantes especiais nas livrarias. Passou-se mais de quarto de século, no entanto, e os editores brasileiros sequer se dignaram a publicar o livro de Ulam. A Nova Fronteira, diga-se de passagem, publicou Os Bolcheviques, em 76. Mas esta obra, que deveria fazer parte dos currículos universitários, hoje você só a encontra em sebos e olhe lá.

De autores brasileiros, raríssimas foram as denúncias. Em 1954, o jornalista gaúcho Orlando Loureiro publicou A Sombra do Kremlin, relato de sua viagem a Moscou em 1952. Procure nos sebos. Há ainda Os Camaradas, de William Wack, certamente o melhor ensaio publicado entre nós sobre a tentativa de Stalin instalar um regime comunista no Brasil. Verdade que não é muito original. Antes de Waack, Osvaldo Peralva, apparatchik do Komintern, havia denunciado a trama do Kremlin, em O Retrato, (Porto Alegre, Editora Globo, 1962). Se Peralva apenas testemunhava, Waack comprovava a intriga com pesquisas in loco, em Moscou.

Também foi publicado no Brasil A Nova Classe, do dissidente montenegrino Milovan Djilas. Publicado em 1957, este ensaio fazia uma análise do sistema comunista iugoslavo, denunciando-o como um regime não igualitário, que estabelecera uma "nova classe" privilegiada do partido, que gozava de benefícios materiais a partir de suas posições. Djilas sabia do que falava: “Eu fiz todo o caminho que pode fazer um comunista, do baixo da escada até o topo, de funções locais a funções nacionais, depois internacionais, da fundação do Partido até a instauração disso que se chama sociedade socialista”. Embora se declarasse abertamente marxista, o autor fazia um requisitório contra a “nova classe”.

Este livro, hoje, é raridade bibliográfica. Teve a virtude de inspirar um outro, A Nomenklatura, do russo Mikhail Voslenski, de 1970, traduzido no Brasil pela editora Record, como A nomenklatura, como vivem as classes privilegiadas na União Soviética. Se você tem ainda algum interesse pelo finado comunismo, pode também encontrar o livro em algum sebo.

De David Caute, que elaborou importantes ensaios como The Great Fear, Communism and the french intellectuals (1914-1966), The Fellow Travellers (1917-1968) ou Sixty-Eight, o leitor brasileiro nem ouviu falar. Le stalinisme, de Roy Medvedev, publicado em 71, nos EUA, com o título Let History Judge, jamais deu as caras em nossas livrarias. Les Staliniens, de Dominique Desanti, de 1975, muito menos. Les Origines intellectueles du leninisme, de Alain Bensançon, nem falar. L'Affaire Kravchenko, de Guillaume Malaurie, nem sombra.

Falei certa vez, em um debate universitário, sobre Pol Pot. Ninguém jamais ouvira falar do homem. Se nossos universitários nem sabem quem foi Pol Pot, podemos imaginar o que devem conhecer de Kravchenko. Me consta que o livro do dissidente russo, que desmitificou definitivamente o stalinismo, J'ai choisi la liberté, foi traduzido nos anos 50 entre nós. O título virou motivo de derrisão entre a intelligentsia tupiniquim. Toda vez que alguém criticava Moscou e seus ucasses, não faltava quem perguntasse ironicamente: ah, você também escolheu a liberdade?

Hoje, é verdade, já está surgindo uma abundante literatura sobre o assunto. Você já pode encontrar boas biografias de Lênin, Stálin e Mao, como as de Robert Service, Simon Sebag Montefiori e Jon Halliday. Ano passado, foi publicado pela Record Ascensão e Queda do Comunismo, calhamaço de 854 páginas do historiador escocês Archie Brown.

A mesma editora já publicara, em 2007, O Século Soviético — Da Revolução de 1917 ao Colapso da URSS, do historiador polonês Moshe Lewin. Em 2008, a Nova Fronteira publicou Os Sete Chefes do Império Soviético, do historiador e general russo Dmitri Volkogonov. Mas o livro era de 1999.

Antes tarde do que nunca. Mas ser valente depois de o bandido morto não tem maiores méritos. Estes livros hoje soam como evocações fúnebres de um passado distante. Falam de cadáveres. Quando os cadáveres eram vivos e exerciam seus poderes – ou seja, quando mais precisavam ser combatidos – a intelligentsia nacional permaneceu silente.

Recém agora, na última década, estamos recebendo informações de um regime que morreu há duas décadas. É como receber luzes de estrelas mortas.