¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, outubro 16, 2012
 
XIITAS, BELEZA E LÁGRIMAS


Em seu blog no UOL, Samy Adghirni, o correspondente da Folha de São Paulo em Teerã, louva a beleza de Mashad, que abriga o túmulo do imã Reza, descendente direto do profeta Maomé e membro do grupo que originou o xiismo. “Beleza e lágrimas na capital religiosa do Irã”, assim intitula o jornalista sua matéria.

“Sempre cheio, o mausoléu do imã Reza reflete a essência do islã xiita: passional, intenso e místico. A qualquer hora ou da noite, multidões de homens e mulheres absorvidos pela dor do martírio do imã choram copiosamente ao se espremerem num empurra empurra asfixiante até conseguir tocar o túmulo. Fiéis acreditam que isso trará sorte e benção – prática rejeitada por sunitas puritanos, que a enxergam como superstição”.

Comoventes, tais demonstrações de fé pungente do xiismo, multidões sofrendo e chorando pela morte do mártir venerado. O correspondente não perde a ocasião de desmentir uma calúnia muito disseminada no Ocidente:

“Aproveito a sua atenção, caro leitor, para corrigir uma inverdade amplamente difundida no Brasil, pela qual xiitas seriam mais “radicais” que sunitas. Pura bobagem. Xiitas não são e nunca foram mais extremistas que os sunitas. Aliás, hoje o grupo mais violento entre facções islamitas é a Al Qaeda, sunita. A rixa entre sunitas e xiitas, duas fés com liturgias e crenças opostos ao ponto de às vezes parecer religiões diferentes, partiu da discórdia acerca da sucessão do profeta Maomé, fundador do islã, após sua morte no século 7. Os sunitas (partidários da “suna” = tradição) acreditavam que os companheiros de Maomé eram os mais qualificados para tomar a frente dos fiéis. Já os xiitas (partidários da “xia” = herança) formaram um grupo dissidente que achava que só quem era parente de sangue de Maomé poderia liderar a comunidade”.

O correspondente nunca escreveu para seus leitores sobre os milhares de muçulmanos xiitas ensangüentados, que realizam o ritual de autoflagelação com facas, correntes e chicotes com pregos, em que homens e crianças cumprem nas ruas a tradição religiosa da Ashura, que marca o aniversário da morte do imã Hussein, neto do Profeta. Verdade que o Irã tem coibido tais atrocidades, mas não deixa de ser uma prática dos xiitas, esses crentes que “não são e nunca foram mais extremistas que os sunitas”. Imagine então o leitor do que são capazes os sunitas.

Por outro lado, espanta ver tanta dor e fervor religioso, em um país que condena mulheres adúlteras ao apedrejamento e homossexuais à morte pela forca. Em um Estado cujos cidadãos, sejam xiitas ou sunitas, cospem na cara de uma mulher que ouse sair pelas ruas sem chador. O correspondente, muçulmano por profissão de fé, não entende a ausência de seu guru em Mashad: “Mais curioso ainda é saber que o aiatolá Ruhollah Khomeini, fundador da República Islâmica, jamais esteve no santuário enquanto dirigiu o Irã (1979-1989)”.

Sayyid Ruhollah Musavi Khomeini, se alguém não lembra, foi o grande líder religioso xiita, guia espiritual e político da Revolução Iraniana de 1979, que acabou levando o país a uma guerra com o Iraque, com o saldo de um milhão de mortos. É autor da famosa frase: “criminosos não devem ser julgados. Devem ser executados”. Foi também quem lançou a fatwa que condenou a morte, no Ocidente, um escritor ocidental, pela publicação de um livro na Europa. Imagine se fosse sunita.

O grande líder xiita é também autor de um grandes momentos do xiismo. Há pouco mais de trinta anoso, o aiatolá Khomeini publicava sua tese teológica – um comentário ao Corão – intitulada Valayaté-Faghih, Kachfol-Astar e Towzihol-Masael. Traduzindo, pela ordem: O Reino do Erudito, A Chave dos Mistérios e A Explicação dos Problemas. Curiosamente, o correspondente da Folha nas terras do Profeta jamais nos informou desta obra excelsa do pensamento xiita.

Excertos do livro foram traduzidos na França, em 1979, quando o aiatolá pregava a derrubada do xá em Neauphle-le-Château, arredores de Paris, sob o título Principes politiques, philosophiques, sociaux et religieux par l’Ayatollah Khomeini. A partir desta edição, foi feita uma tradução brasileira, pela Record, nos anos 80, sob o título genérico de O Livro Verde dos Princípios Políticos, Filosóficos, Sociais e Religiosos do Aiatolá Khomeini. Em 1989, transcrevi alguns dos princípios do grande líder xiita. Pinço cá e lá algumas reflexões do erudito autor:

O homem que ejaculou após ter tido relações com uma mulher que não é sua e que de novo ejaculou ao ter relações com a legítima esposa, não tem o direito de fazer orações se estiver suado; mas, se primeiro tiver tido relações com a sua mulher legítima e depois com uma mulher ilegítima, poderá fazer as suas orações mesmo se estiver suado. Por ocasião do coito, se o pênis penetrar na vagina da mulher ou no ânus do homem completamente, ou até o anel da circuncisão, as duas pessoas ficarão impuras, mesmo sendo impúberes, e deverão fazer as suas abluções.

No caso de o homem — que Deus o guarde disso! — fornicar com animal e ejacular, a ablução será necessária.

Durante a menstruação da mulher, é preferível o homem evitar o coito, mesmo que não penetre completamente — ou seja, até o anel da circuncisão — e que não ejacule. É igualmente desaconselhável sodomizá-la.

Dividindo o número de dias da menstruação da mulher por três, o marido que mantiver relações durante os dois primeiros dias deverá pagar o equivalente a 18 nokhod (três gramas) de ouro aos pobres; se tiver relações sexuais durante o terceiro e quarto dias, o eqüivalente a 9 nokhod e, nos dois últimos dias, o eqüivalente a 4½ nokhod.

Mas atenção, leitor: sodomizar uma mulher menstruada não torna necessários esses pagamentos.

Se o homem tiver relações sexuais com a sua mulher durante três períodos menstruais, deverá pagar o eqüivalente em ouro a 31½ nokhod. Caso o preço se tiver alterado entre o momento do coito e o do pagamento, deverá ser tomado como base o preço vigente no dia do pagamento.

De duas maneiras a mulher poderá pertencer legalmente a um homem: pelo casamento contínuo e pelo casamento temporário. No primeiro, não é necessário precisar a duração do casamento. No segundo, deve-se indicar, por exemplo, se a duração será de uma hora, de um dia, de um mês, de um ano ou mais.

Enquanto o homem e a mulher não estiverem casados, não terão o direito de se olhar.

É proibido casar com a mãe, com a irmã ou com a sogra.

O homem que cometeu adultério com a sua tia não deve casar com as filhas dela, isto é, como suas primas-irmãs.

Se o homem que casou com uma prima-irmã cometer adultério com a mãe dela, o casamento não será anulado.

Se o homem sodomizar o filho, o irmão ou o pai de sua esposa após o casamento, este permanece válido.

O marido dever ter relações com a esposa pelo menos uma vez em cada quatro meses.

Se, por motivos médicos, um homem ou uma mulher forem obrigados a olhar as partes genitais de outrem, deverão fazê-lo indiretamente, através de um espelho, salvo em caso de força maior.

É aconselhável ter pressa em casar uma filha púbere. Um dos motivos de regozijo do homem está em que sua filha não tenha as primeiras regras na casa paterna, e sim na casa do marido.

A mulher que tiver nove anos completos ou que ainda não tiver chegado à menopausa deverá esperar três períodos de regras após o divórcio para poder voltar a casar.

Qualquer comércio de objetos de prazer, como os instrumentos musicais, por menores que sejam, é estritamente proibido.

É proibido olhar para uma mulher que não a sua, para um animal ou uma estátua de maneira sensual ou lúbrica.

Deixe sua islamofobia de lado, leitor, e curta as belezas desse Irã intenso, passional e místico, onde o culto a um mártir leva os crentes às lágrimas. O Islã é lindo.

PS - Sobre o ritual da Ashura: http://migre.me/bbxg3