¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, novembro 27, 2012
 
DE VOLTA AO DESERTO VERDE





Há duas semanas, fui revisitar meus pagos. Tinha estado lá pela última vez há 35 anos. Agora, minha filha queria conhecê-los, para entender melhor o pai. E para entender melhor esta volta, retomo depoimento anterior, que escrevi há quase dez anos.

Nasci no Upamaruty, distrito rural de Livramento, na fronteira seca entre Brasil e Uruguai. Coincidia que o Uruguai começava justo no horizonte, onde ficava a Linha Divisória. Nesta linha, de quilômetro em quilômetro há um marco de concreto. De seis em seis, há um marco maior.

Em frente a nosso rancho, ficava o Marco Grande dos Moreiras, sobrenome paterno. Meu pai me erguia até o topo do marco, me fazia virar para o nascente e dizia: “Fala para os homens do Uruguai, meu filho”. Depois, me virava para o poente: “Fala agora com os homens do Brasil”. Nasci entre dois países, sempre olhando para um e outro. Daí a querer ir mais adiante foi só um passo.

No lado do Uruguai, no capão de árvores que ainda teimava em existir, vivia Don Floro Rocha, pai de sete guapas morochas e de um só varão, o Gojo. Gessi, uma das gurizas, cuidou de mim naqueles dias.

Em 77, quando ia para a França, levei a Baixinha para conhecer aquelas coxilhas e canhadas onde nasci. Pegamos um Fusca em Dom Pedrito e rumamos até a Linha. Uma légua além do obelisco que marca a assinatura da humilhação farroupilha nos campos de Ponche Verde, olhando ao longe o vulto da Casa, coração num ritmo esquisito, o Fusca atolou num barral. Justo em frente à casa do Hilário da Siá Cantilha, que há uns trinta ou mais anos estava doente e às portas da morte. Era tuberculose. Em meus dias de colégio primário, as professoras me recomendavam passar de longe pelo rancho do Hilário e jamais beber água de seu poço, mesmo que a sede apertasse. Pois lá estava o Hilário, eterno, apoiado em um moirão, em carne e osso, mais osso do que carne, era verdade, mas mais rijo que o moirão.

Abandonamos o Fusca no lamaçal. Debrucei-me no alambrado e me dispus a alguns dedos de prosa. Eu havia abandonado há cerca de trinta anos aqueles pagos e tinha a impressão que Hilário jamais se afastara daquele poste. Falou de sua doença. Que quase havia batido as botas no ano anterior, fora até mesmo levado para um hospital em Dom Pedrito.

— Mas eu senti que iam me matá naquele hospital. Mal senti por perto o bafo da Moira Torta, peguei meus trapo e saí como quem roba daqueles quarto branco. Se não fujo, tava morto.

E estaria morto mesmo, pensei. No entanto, ali estávamos charlando, contando as novidades do Ponche Verde, quem havia casado ou morrido. Em minha pressa urbana, me senti definitivamente expulso daquele universo primitivo onde o tempo corria com o vagar de uma lesma, se é que corria. Hilário não entendia porque eu consultava tanto o relógio. Tentei explicar que estava voltando das Europas, onde tudo tinha horário. Hilário era homem informado:
— Já me falaro das Oropa. Fica meio pras banda de Passo Fundo, segundo me contaram.

E ficava mesmo naquele rumo. Deixei Hilário escorado no moirão e fui revisitar minha infância. Mas já era um intruso naquele mundo de tempo infinitamente lento, preguiçoso. À medida que me aproximava do Cerro da Tala, onde estava a Toca da Onça, um nó foi me estrangulando a garganta. Lá adiante, no Uruguai, frente ao Marco dos Moreiras, o rancho de Don Floro Rocha. No lado do Brasil, minha tapera e a casa do Tio Ângelo.

Para nós, piás, era simplesmente a Casa, onde se reunia a família toda. Um cinamomo generoso abrigava os viventes com suas copas, de dia para proteger do sol, de noite do sereno. Cheguei à porta da Casa, acocorei-me em uma pedra de amolar facas, e gritei: “Ô de casa!”. Corina, minha prima, veio lá dos fundos. Não me reconheceu, é claro. “O senhor, quem é?” Balbuciei: “Vim ver o tio Ângelo”. Ele não mais vivia. Eu sabia disso. Falei para identificar-me. Ela me reconheceu: “Negrinho!”. Nos abraçamos chorando.

Corininha. Quando ela ia lavar roupas na sanga, eu pegava um caniço de bambu e ia pescar joaninhas. Pescar joaninhas umas ovas. O que queria mesmo era acocorar-me do outro lado do riachinho e ficar olhando, não para as joaninhas, mas para aquela coisa escura e cheia de mistérios, meio que entreaberta, entre as coxas da priminha. Ela sabia que as joaninhas pouco me interessavam e sentia-se muito bem esfregando as roupas no pedregal, frente a meus olhos arregalados.

Tio Ângelo era um precursor. Lá no meio do deserto verde da pampa, ouvira falar no tal de rádio e tomara a decisão de ter o seu. Em um raio de léguas em torno ao rancho, nos bolichos de Ponche Verde, Três Vendas, Villa Indarte, Upamaruty, Puntas de Jaguary, Cerrilhada, enfim, onde chegasse a notícia de seu projeto, era visto como louco ou mentiroso, onde se havia visto um pobre diabo com tais luxos da cidade? Mas o homem falava sério e fazia repetidas viagens a Livramento e a Dom Pedrito, de onde voltava sempre de mãos vazias, mas com um jeitão pensativo, de quem pesa as conveniências e inconveniências de um gasto absurdo.

Um belo dia, cortou o mais retilíneo e mais alto dos eucaliptos, despiu-lhe os galhos, falquejou-o de forma a deixá-lo quadrado e o pintou de vermelho, enquanto se avolumavam nas imediações o boato de que estava enlouquecendo. Não lhe foi fácil reunir vizinhos para erguê-lo, mediante um complexo sistema de máquinas de alambrar, e os que conseguiu reunir o ajudaram com certa piedade, o homem estava louco mesmo, seria pior contrariá-lo: onde se viu derrubar um eucalipto, pintá-lo de vermelho e tornar a plantá-lo na terra?

Mantenho ainda viva a lembrança da operação. Levara um dia todo, o poste colossal fora erguido com quatro fios de arame puxados de árvores próximas pelas máquinas de alambrar. Havia o risco de que algum fio rebentasse, e adeus rancho! Erguido o poste, Tio Ângelo, contente, carneou uma ovelha e, em meio ao churrasco e à cachaça, a vizinhança até mesmo esqueceu aquela torre absurda.

Semana seguinte, atrelou um matungo a uma aranha e se tocou para Villa Indarte, no Uruguai. Voltou tarde da noite e à meia-guampa, com um imenso volume quadrado no pescante da aranha. Ainda não era o rádio, apenas duas baterias e um aerodínamo. Instalado o catavento no poste, seu conceito mudou nos bolichos da região, parece que o homem vai mesmo trazer o tal de rádio, dizia-se. O que de fato ocorreu no domingo seguinte, quando tio Ângelo voltou mais uma vez da Villa Indarte, agora com um volume um pouco menor, um imenso Telefunken, e num porre federal.

Descera a coxilha cantando, mal pulou da aranha gritou feliz: “agora não preciso cantar mais, tenho quem cante pra mim. E esses hijos de la gran puta china de mierda vão ver o que é rádio”.

A notícia correra como um raio na redondeza. Nos dias seguintes não houve tardinha em que não chegassem dois, três vizinhos a cavalo, com um ar meio sem jeito, com o pretexto esfarrapado de uma visita, “onde se viu visita em dia de semana, dia de trabalho”, resmungava feliz tio Ângelo. E judiava dos curiosos, lhes oferecia mate, perguntava sobre as novidades, sempre embaixo do cinamomo antiquíssimo, ao lado do catavento, cujas pás se moviam impelidas pela brisa do entardecer. O sol se escondia, as visitas hesitavam em dizer ao que vinham e tio Ângelo, num misto de desprendimento e vingança, convidava: “o compadre quer passar pra sala, escutar um pouco de rádio?”

Com o tempo atenuara-se aquele ímpeto de desforra, como também o complexo de culpa dos vizinhos - por vizinhos entendia-se pessoas que moravam a léguas de distância - e a cada noite tio Ângelo recebia gente vinda de longe para escutar rádio. Ao chegar, já iam desencilhando os matungos, pois a sessão de escuta só terminava lá pela meia-noite. Orgulhoso, tio Ângelo não permitia a ninguém, nem mesmo a mim, mexer nos botões do Telefunken. Qual sacerdote oficiando sua liturgia, solenemente ligava o rádio e girava o dial, perguntando à roda, com picardia, se queriam escutar brasileiro ou castelhano, tangos ou rancheiras, música ou notícias.

Tarde da noite, alegava ter de madrugar para o trabalho, a indiada se despedia, encilhava os cavalos e saía perfurando a noite na pampa com vozes que aos poucos morriam nas canhadas. Tio Ângelo então me chamava, “vem cá, guri, o melhor vem agora”. E mudava de onda. Ouvíamos então, silentes, ruídos que pareciam vir de estrelas distantes, línguas estranhas que escutávamos durante horas tentando entender ao menos uma palavra, notícias de outros povos e costumes, canções de outras gentes.

A mim, na época, parecia-me impossível que um ser humano pudesse falar outra língua que não os dois únicos idiomas existentes no mundo, o brasileiro e o castelhano. Com o tempo, quando o rádio já não mais constituía milagre, os vizinhos, se passavam por Dom Pedrito, lhe enviavam um chasque pela rádio Ponche Verde, endereçado à Estância do Pau Vermelho, o que fazia tio Ângelo sorrir divertido, não pelo duplo sentido do nome, mas pelo fato de chamarem de estância suas poucas braças de terra.

Bueno, agora voltei aos pagos. Fui conduzido por um amigo dos dias de Dom Pedrito, o Pacase, mais a Chica, minha prima, e minha fotógrafa particular. Do obelisco em diante, taperas por todos os lados. Tapera do Ivo, pai de minha prima. Tapera do Dalmácio, seu avô. Tapera do Raul, nosso tio. Mais as taperas da Toto Ferreira, do Hilário e da Siá Cantilha. Tapera do Camilo Morales. Todos morreram e os filhos bateram na marca e se mandaram para o povoado. Tapera do Dr. Christiano Fischer, médico cujo centenário assisti em 1952, quando tinha cinco anos.

Só não estava tapera a igreja São Domingos, administrada por meu padrinho de batismo, o Érico Berruti Corsini. Catolicíssimo, fez uma tumba solene para sua mulher atrás da capela. Em 2004, quando andei por Dom Pedrito, soube que vivia em Rivera e tinha 101 anos. Achei que estivesse já mais pra lá do que pra cá e preferi não visitá-lo. Ano passado, uma prima – coincidentemente a que me acompanhou nesta volta à infância - me escreveu. Dizia ter estado com o Berruti. Não acreditei.

Pois estava com 107, saudável e lúcido e escrevendo nos jornais de Livramento. Vivito y coleando. O homem atravessou o século passado inteiro! Segundo minha prima, estava recebendo um teólogo italiano em sua fazenda. E ainda lembrava de mim. Era um desses raros homens que podem chamar o papa de “aquele rapaz”. Morreu aos 108.

Adelante! Ocorreu que furamos o pneu em plena Linha, justo ao lado do Marco dos Moreiras. Do lado do Uruguai, o rancho de Don Floro Rocha, também tapera. No Brasil, minha tapera e a agora tapera do Tio Ângelo. Em idade já provecta, na faixa dos 60, não conseguíamos descer o estepe, além do mais trancado por uma corrente. Urgia gente mais moça. Náufragos entre duas nações, ficamos à espera de um milagre. Foi quando passou um personagem para mim novo naquela geografia, uma moça de moto com uma filha na garupa. Prometeu ajudar-nos. Que chamaria o Gojo, que ainda ficara num restinho de campo frente à tapera do pai.

Me preparei espiritualmente para passar à noite no pampa. Gojo era uns dez anos mais velho do que eu. Estaria caindo aos pedaços – comentei com o Pacase. Mas era o Gojo ou nada e melhor o Gojo do que nada. Dali a meia hora chegou nosso socorro, também em uma moto. Outra moça havia passado de moto pela Linha. O campo havia mudado. Cavalo já pertencia a meu passado.

Chegou um paisano de barba e bigode brancos, franzino mas rijo como um touro. Minha memória me traiu, pensei com meus botões. Vai ver que o Gojo era mais novo do que eu. Sem me apresentar, fui logo perguntando pela Gessi. Ele naturalmente não me reconheceu e teve um momento de perplexidade.

- Mi hermana?
- Si, tu hermana. Eu nasci ali na frente, sou filho do Canário. Deves lembrar de mim. Lembrava, apesar de mais de meio século passado. Mi hermana está en Nova Jorque.
- E a Gleci?
- Está em Paris.
- E as outras?
- Ah, uma está em Madri, outra em Dom Pedrito...

Uma sensação de raro bem-estar me tomou conta da alma. Mulherada alarifa, barbaridade! Mais esparramadas que filhotes de perdiz. Haviam saído das mesmas grotas que eu, daquele deserto verde onde nasci, e viviam no mundo, em plena civilização. Gojo, e mais alguns outros que haviam chegado, nos trocaram o estepe. Ocorreu-me então uma pergunta:
- Que idade tens, Gojo?
- 78.

Os tauras daqueles pagos não são chegados à morte. Diante de nós, decrépitos urbanos, Gojo parecia um gurizote. Voltando a Dom Pedrito, Pacase falou-me no Dezé. Era o cartorário do Ponche Verde, em meus dias de guri. Sim, eu lembrava do Dezé. Quando morreu?
- Não morreu. Está com 99.

Decididamente, a Indesejada das Gentes não é muito popular naquelas plagas. De volta a Porto Alegre, fui revisitar dois amigos dos dias de universidade, na flor dos 80. Me assustei com o que me espera, salvo alguma providencial queda de avião. Estão ambos mais para lá do que para cá. A urbe mata.

Reposto o pneu, fui até onde nasci. No hallé ni rastro del rancho: ¡sólo estaba la tapera! ¡Por cristo si aquello era pa enlutar el corazón! – como decía Fierro. Logo adiante, ainda em pé mas abandonado aos cardos e à flechilha, o rancho do tio Ângelo. Nem sombra do cinamomo, muito menos do catavento. O mato e o pastiçal fizeram um cerco implacável à tapera, como se, longe do olhar humano, a natureza se entregasse a uma orgia obscena.

Fui até a cacimba onde, em 77, ainda me debrucei e bebi, minhas lágrimas se misturando à água salobra. Estava seca, muda e atulhada. E assim foi minha volta ao deserto verde onde nasci.