¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, dezembro 04, 2012
 
"A CONSTITUIÇÃO SOMOS NÓS"


Comentei, em crônica passada, os pendores poéticos do ministro Ayres Britto, recentemente aposentado do STF. Na ocasião, confessor que nem sabia que o homem poetava e já havia escrito seis livros de poesia. É sua a frase lapidar proferida durante o julgamento das uniões ditas homoafetivas: “o órgão sexual é um plus, um bônus, um regalo da natureza. Não é um ônus, um peso, um estorvo, menos ainda uma reprimenda dos deuses”.

O voto inaugural do ministro Ayres Britto está eivado de uma poesia extraordinária: “Em suma, estamos a lidar com um tipo de dissenso judicial que reflete o fato histórico de que nada incomoda mais as pessoas do que a preferência sexual alheia, quando tal preferência já não corresponde ao padrão social da heterossexualidade. É a perene postura de reação conservadora aos que, nos insondáveis domínios do afeto, soltam por inteiro as amarras desse navio chamado coração”.

De minha época, não era bem esse navio chamado coração que levava ao homossexualismo. Mas sim outras naves menos nobres. Sem falar que nunca houve perene postura de reação conservadora em relação à prática. Em seu erudito voto, o ministro cita desde Platão a Max Scheler, de Descartes a Fernando Pessoa, de Hegel a Nietzsche, mas demonstra escasso conhecimento de história. Entre as influências intelectuais do ministro, que de uns 20 anos para cá aderiu ao espiritualismo e ao cardápio vegetariano, conforme admite em entrevista à Folha de São Paulo, estão Krishnamurti e Osho. Durante anos, o Brasil viveu sob a tutela de um magistrado influenciado por gurus indianos. Sobre Osho, diz a Wikipedia:

"Rajneesh escreveu vários livros, que até hoje fazem muito sucesso em muitos países, inclusive o Brasil, país em que tem um pequeno mas muito ativo grupo de seguidores, espalhado em muitos dos grandes centros e em algumas comunidades mais afastadas. Muitos desses seguidores exercem algum tipo de atividade terapêutica alternativa, como por exemplo a Osho Pulsation, Danças Sagradas, Biodanza, práticas de Shamanismo e a assim chamada Meditação Dinâmica (há quem diga tratar-se de um exercício aeróbico que promove embriaguez por hiperventilação). Seus seguidores (Sannyasins) o apresentam como um grande contestador e libertador. Seu ensinamento sem dúvida enfatizava bastante a busca de liberdade pessoal e apresentava uma atitude mordaz em relação à tradição e à autoridade estabelecida".

Tudo muito edificante. O que Wikipedia não diz, é que Osho - ou Rajneesh - se dizia Deus, fez fortuna enganando jovens e provocou um escândalo internacional com suas cerimônias tântricas, em verdade alegres orgias sexuais. Possuía terrenos, hotéis, uma rede de casa de massagens na Europa - isto é, prostituição - e uma frota de 91 Rolls-Royces. Acusado de perversão, realização de lavagem cerebral e sonegação de impostos, foi deportado dos Estados Unidos para a Índia, onde morreu de Aids.

Nos EUA, respondeu por 35 acusações e foi condenado a dez anos de prisão com sursis. Foi expulso também da Grécia, foi rechaçado da Alemanha e da Espanha, só conseguiu entrar na Irlanda porque seu piloto alegou ter um doente a bordo. Sua secretária Sheela Birustiel-Silvermann (Ma Anad Sheela) foi extraditada da Alemanha, onde estava no cárcere em Bühl, e foi condenada pelo tribunal federal de Portland (Oregon), em 86, a quatro anos e meio de prisão, por fraude e envenenamento alimentar. A investigação revelou que centenas de jovens mulheres foram constrangidas a aceitar uma operação de esterilização. Rajneesh não tem biografia, mas folha corrida.

Uma influência edificante na biografia de um magistrado da suprema corte do país. Não bastasse Ayres Britto sofrer a influência de um notório vigarista, tem agora se dedicado a essa mistura espúria de espiritualismo e física quântica, tão encontradiça em nossos dias:

- Depois, de uns 12 anos para cá, comecei a me interessar por física quântica, e ela me pareceu uma confirmação de tudo o que os espiritualistas afirmam. A física quântica, sobretudo os escritos de Dannah Zohar [especializada em aconselhamento espiritual e profissional]. Venho lendo os livros dessa mulher, uma americana que escreveu uma trilogia maravilhosa: "O Ser Quântico", "A Sociedade Quântica" e "QS -- Inteligência Espiritual". Também passei a me interessar muito por neurociência. Os quânticos ainda vão dominar o mundo. Temos agora uma teoria quântica do direito.

Ainda há pouco, dizia o ministro:

"Abro as janelas do Direito para o mundo circundante. Não para fugir do fundamento técnico, científico. Mas meu olhar sobre o dispositivo jurídico é influenciado pela vida vivida. O Direito é vida pensada pelo legislador, mas a decisão tem de ser vida vivida. Sou julgador, quero saber como vive aquele que vou julgar. Sou convencido pelos físicos quânticos. Em 1905, Einstein, que era físico quântico, cunhou uma expressão que ficou famosa: efeito do observador. Ele dizia que as partículas em que o átomo se decompõe, não só uma partícula influencia a outra, como também o observador desencadeia reação no objeto observado. Entendo que essa teoria quântica serve como teoria jurídica".

Ora, não precisava apelar a Einstein, que afinal falava de um mundo alheio ao Direito, o mundo dos átomos. Bastaria ter lembrado da antropóloga Margaret Mead, cuja obra sobre os nativos da Polinésia revelou-se um embuste, porque os nativos respondiam o que sabiam que a antropóloga queria ouvir. Ayres Britto deve também conhecer os repentistas de seu nordeste, que respondem – e produzem versos – como os PhDeuses universitários querem ouvir. Pretender aplicar a física quântica ao Direito é indigência mental somente comparável aos que utilizam a física quântica como instrumento de auto-ajuda.

Sem mudar de assunto, mudo de personagens. O leitor deve ter tido ciência da entrevista de Luiz Fux, concedida ontem à Folha de São Paulo. Sem nenhum constrangimento, o novo ministro do STF admite ter recorrido às recomendações de Delfim Netto, ex-ministro da ditadura. Pediu carta de apoio ao celerado do MST, João Pedro Stedile. Contou com a ajuda de Antônio Palocci, ex-ministro de Lula implicado na vil quebra de sigilo de um porteiro. Pediu uma força ao governador do Rio, Sérgio Cabral, o personagem da dança do guardanapo em Paris. E se reuniu com José Dirceu, o mais célebre réu do mensalão. "Eu fui a várias pessoas de SP, à Fiesp. Numa dessas idas, alguém me levou ao Zé Dirceu porque ele era influente no governo Lula."

O futuro ministro da suprema corte, para dela fazer parte, pede a recomendação de um bandoleiro invasor de terras, de ministros cujos nomes estão mais sujos do que pau de galinheiro, e de um ex-ministro salafrário que, na época, já era réu dos crimes do mensalão e hoje foi condenado pelo STF ao qual Fux foi guindado.

Pode-se admitir, em país sério, um candidato à suprema magistratura pedindo recomendação a um réu que terá de julgar logo adiante? Faltou pedir recomendação de quem? Talvez do Marcola e do Fernandinho Beira-Mar. O senso de impunidade é tal no Brasil que um ministro se permite declarar à imprensa que pediu uma mão a criminosos para ocupar sua cadeira de ministro.

Mudo mais uma vez de personagens, sem no entanto mudar de assunto. Leio em reportagem do Estadão da semana passada:

“Para contornar a contradição entre os dois artigos da Constituição, alguns ministros afirmarão que cabe à Câmara decidir a cassação de mandatos de parlamentares que cometerem crimes contra a administração pública, por exemplo. Um dos ministros afirmou que o deputado que se envolver num acidente de trânsito e eventualmente for condenado por homicídio culposo não precisaria necessariamente perder o mandato.

“O tema, admitiu o ministro Marco Aurélio Mello, pode provocar uma queda de braço entre a Câmara e o Supremo. “No nosso sistema, o Supremo tem a última palavra”, afirmou, ao adiantar como deve votar na semana que vem. “A Constituição é o que o Supremo diz que é”, acrescentou”.

Existe ou não existe uma carta chamada constituição? Ou essa carta não passa de um papel pintado com tinta, como diria o Pessoa, interpretado ao bel talante de seus donos, os ministros? Pelo jeito, parece que é, pois os ministros não tiveram escrúpulo algum ao aprovar dispositivos flagrantemente inconstitucionais, como a anulação do direito aquirido, na votação da reforma previdenciária, a lei das cotas e o casamento homossexual. A Constituição é o que o Supremo quer que a Constituição seja.

Alguém ainda lembra de Luís XIV? A ele atribuiu-se a frase “l’État c’est moi”. Não bastasse termos um ministro quântico influenciado por um vigarista indiano, um outro recomendado para a suprema magistratura por bandoleiros, temos agora um outro imbuído da idiossincrasia da realeza da França. É como se dissesse: “la Constitution, somme nous”. Nós, os do STF. Do bestunto destes senhores, depende a vida, a liberdade e o futuro dos brasileiros.

E a frase passa batida na imprensa, sem que jornalista algum comentasse este laivo de monarquia em plena república.