¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, dezembro 13, 2012
 
ORTOGRAFIA TAMBÉM É GENTE


Quem me acompanha, sabe que pessoa é um de meus poetas diletos. Encontrei-me com o poeta nos anos 70, naquela edição de 1969, Poesias Completas, que até hoje me acompanha. Apesar de ter morrido em 35, naqueles dias Pessoa era poeta de iniciados. Hoje, foi vulgarizado por Caetano Veloso e virou tema de teses (isto é, de bolsas de estudos), de acadêmicos que adoram pesquisar questões transcendentes, como o uso do pronome relativo em sua obra.

Em Paris, na biblioteca da Sorbonne Nouvelle, encontrei uma tese de Doctorat d’État, redigida por uma professora brasileira, em quatro volumes. Aposto que nem os membros da banca devem ter lido todo o catatau. No máximo, um volume e olhe lá. Uma tese de Doctorat d’État exige uns oito ou dez anos de pesquisa. A moça deve ter ganho, para redigi-la, mais do que Pessoa ganhou em toda sua vida.

Pessoa foi profanado, para desalento de seus fiéis. Era bem melhor quando conhecido de poucos. Hoje, caiu até no FaceBook, onde lhe atribuem até mesmo frases de auto-ajuda. Mas o poeta continua em pé, pelo menos para o aprecia independentemente de modismos universitários. De minha parte, acho que bastaria ter escrito A Tabacaria para ser considerado gênio.

As Poesias Completas, de Pessoa, mais o Martín Fierro, de Hernández, foram os dois livros que me mantiveram em pé, nos duros dias que passei na Suécia. Em pé, frente à janela de meu quarto, olhando as ruas hirtas de neve, eu repetia:

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é

(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.


Pessoa se revela em um de seus ensaios, Heróstrato:

“A avassaladora produção literária tornará a seleção igualmente avassaladora, pela reação. A verdadeira produção abundante de livros bem escritos fará com que muitos livros antigos pareçam menos bons do que quando se destacam de um pano de fundo de nada. (...) A competição entre os mortos é mais terrível do que a competição entre os vivos; os mortos são mais numerosos”.

Aqui o homem já diz ao que vem. Quando afirmava que o gênio é o mais comum dos homens, tão comum a ponto de passar despercebido em sua época, obviamente falava de si mesmo. Hostil à celebridade, Pessoa morreu quase inédito e considerava ser editado uma ofensa à genialidade.

O poeta foi apropriado pela universidade. Mas preserva sua revolta primeva. Diz-se que o povo é quem faz a língua. Não é o que pensam os acadêmicos, que há muito se arvoraram de donos da língua. Nestes dias em que um intelectual irresponsável promoveu uma reforma inútil e incoerente da língua portuguesa, Pessoa mantém-se irredutível. Halison Lunardi, leitor atento, me envia o que pensa Pessoa das reformas ortográficas.

Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.

Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu veto manto régio, pelo qual é senhora e rainha.


(...)

O argumento da uniformização é uma coisa, a base em que uniformizar é outra. Sobre as vantagens da uniformização ortográfica estamos, creio, todos de acordo; não o estamos sobre a ortografia que haja de ser a uniforme.

Também não o estaremos, suponho, sobre a imposição da ortografia. Que, tomada certa ortografia por oficial, d'ela use o Estado nas suas publicações, não é mais que inevitável e justo. Sobre o que sejam, para este efeito, «publicações do Estado» haverá um pouco mais de dúvida. Os documentos oficiais, «Diários do Governo», etc. por certo que são publicações do Estado. Os livros de estudo primário — isto é, os por onde se aprenda a ler — usados nas escolas do Estado, também o serão. Que tem, porém, o Estado com os livros que se empregam nas escolas particulares? Que tem com os livros que servem, não para ensinar a ler, mas para ensinar coisas que neles se lêem?

A ortografia é um fenómeno da cultura, e portanto um fenómeno espiritual. O Estado nada tem com o espírito. O Estado não tem direito a compelir-me, em matéria estranha ao Estado, a escrever numa ortografia que repugno, como não tem direito a impor-me uma religião que não aceito.

No Brasil a chamada reforma ortográfica não foi aceite, nem ainda hoje, depois de assente em acordo entre os governos português e brasileiro, é aceite. Quis-se impor uma coisa com que o Estado nada tem a um povo que a repugna.


Entre nós, o Estado impôs e ninguém ousou chiar. Imprensa e universidade poderiam ter reagido. Não reagiram. Português, Pessoa defendeu com gosto sua língua. O que talvez explique a relutância dos lusos em aceitar em acordo espúrio, imposto por iniciativa de um dicionarista.

Estou pensando em tomar uma cerveja, na próxima segunda-feira, ao lado de Pessoa, na Brasileira do Chiado. Mas até hoje, quinta-feira, ainda não sei se brindarei junto ao poeta.