¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, fevereiro 27, 2013
 
DEUS ÚNICO? ONDE? *


Escreve-me Franciene: “sinto muito que você tenha deixado de crer em Deus por causa da falibilidade humana... Preferível se tivesse deixado de crer na humanidade”. Engana-se a leitora. Deixei de crer em Deus por causa da falibilidade divina.

Em qual deus você gostaria que eu acreditasse, Franciene? Naquele deus dos judeus que manda massacrar, arrasar, degolar, destruir cidades, matar tudo que respire? Ou no deus dos cristãos, que promete o fogo eterno a quem não estiver com ele?

Cá entre nós, nenhum desses deuses me serve. Por outro lado, leio a Bíblia não como manifestação da palavra divina, mas como obra literária. Um deus não seria tão incoerente. Incoerência é coisa humana.

Prossegue a leitora: “Bem, pensei que falávamos do único Deus que existe, o Deus da Bíblia, o Deus dos Judeus, o Deus dos Cristãos...”

Bem se vê que a leitora jamais leu a Bíblia atentamente. Não há um só deus no Antigo Testamento:

Diz Labão a Jacó: “Mas ainda que quiseste ir embora, porquanto tinhas saudades da casa de teu pai, por que furtaste os meus deuses?”

Diz Jacó à sua família: “Lançai fora os deuses estranhos que há no meio de vós, e purificai-vos e mudai as vossas vestes”.

Diz Jeová aos hebreus: “Porque naquela noite passarei pela terra do Egito, e ferirei todos os primogênitos na terra do Egito, tanto dos homens como dos animais; e sobre todos os deuses do Egito executarei juízos; eu sou o Senhor”.

Canta Moisés este cântico a Jeová: “Quem entre os deuses é como tu, ó Senhor? a quem é como tu poderoso em santidade, admirável em louvores, operando maravilhas?”

Disse Jetro, o sogro de Moisés: “Agora sei que o Senhor é maior que todos os deuses; até naquilo em que se houveram arrogantemente contra o povo”.

O Pentateuco está repleto de deuses. Astarote, Baal, Dagom e por aí vai. Em momento algum Moisés afirma ser Jeová o único deus. Aliás, até o próprio Jeová reconhece a existência de seus pares, quando determina: “Não terás outros deuses diante de mim”. Os deuses eram muitos na época do Pentateuco. Jeová é apenas um entre eles, o deus de uma tribo, a de Israel. Em La Loi de Moïse, escreve Jean Soler: “Ora, nem Moisés nem seu povo durante cerca de um milênio depois dele – os autores da Torá incluídos – não acreditavam em Deus, o Único. Nem no Diabo”.

A idéia de um deus único só vai surgir mais adiante, no dito Segundo Isaías. Reiteradas vezes escreve o profeta:

Num acesso de egocentrismo, Jeová se proclama o único:

Quem há como eu? Que o proclame e o exponha perante mim! Quem tem anunciado desde os tempos antigos as coisas vindouras? Que nos anuncie as que ainda hão de vir. Não vos assombreis, nem temais; porventura não vo-lo declarei há muito tempo, e não vo-lo anunciei? Vós sois as minhas testemunhas! Acaso há outro Deus além de mim?

Ou ainda:

Eu sou o Senhor, e não há outro; fora de mim não há Deus; eu te cinjo, ainda que tu não me conheças. (...) Porventura não sou eu, o Senhor? Pois não há outro Deus senão eu; Deus justo e Salvador não há além de mim.

Só aí, e tardiamente, surge na Bíblia a idéia de um só Deus. Jean Soler nota uma safadeza nas traduções contemporâneas da Bíblia: Jeová está sumindo. Fala-se em Deus ou Senhor, em Eterno ou Altíssimo. Como Jeová é apenas o deus de Israel, melhor esquecer o deus tribal. Ao que tudo indica, alguns tradutores fazem um esforço para transformar um livro politeísta em monoteísta. Substituiu-se a monolatria - culto de um só deus nacional - pelo monoteísmo, culto de um deus único.

Mas a leitora não desiste: “ler a bíblia como uma obra literária é uma opção. A bíblia é o único livro que pode ser lido junto com o seu Autor”.

Quanto a ser Deus o autor da Bíblia, todas as igrejas cristãs admitem a autoria humana, a tal ponto que até hoje não se sabe muito bem quem escreveu o quê. Sem ir muito longe, fica claro que Moisés não escreveu o Pentateuco, já que nele narra sua própria morte. Das treze cartas atribuídas a Paulo no NT – segundo o teólogo Bart Erhman, em Pedro, Paulo e Maria Madalena - sabe-se que apenas sete são incontestavelmente dele. Seis das cartas diferem em vocabulário e estilo literário utilizado, pontos de vista teológicos representados e o contexto histórico das epístolas: algumas das cartas pressupõem uma situação que surgiu bem depois da morte de Paulo. Um deus onisciente não cometeria tais lapsos.

Franciene volta à carga: “Bem, pensei que falávamos do ÚNICO DEUS que existe, o Deus da Bíblia, o Deus dos Judeus, o Deus dos Cristãos...”

A idéia do deus único emerge lentamente do seio de uma cultura onde havia vários deuses. Quando Paulo vai a Atenas pregar a nova doutrina, alguns filósofos epicuristas e estóicos se perguntavam quem seria aquele conversador. Levando-o ao Areópago, quiseram saber: “Poderemos nós saber que nova doutrina é essa de que falas? Pois tu nos trazes aos ouvidos coisas estranhas; portanto queremos saber o que vem a ser isto”.

Os atenienses, muito cautos em relação aos deuses, haviam erguido inclusive um altar ao Deus desconhecido. (Nunca se sabe...). Paulo pega a deixa e deita verbo:

“Passando eu e observando os objetos do vosso culto, encontrei também um altar em que estava escrito: AO DEUS DESCONHECIDO. Esse, pois, que vós honrais sem o conhecer, é o que vos anuncio. O Deus que fez o mundo e tudo o que nele há, sendo ele Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos por mãos de homens”.

Os atenienses não entendem o novo deus. Entendiam os deuses de cada nação. Havia os deuses gregos, romanos, egípcios, persas. Que deus era esse que não pertencia a nação nenhuma? Ora, não pertencendo a nação nenhuma, disto decorria uma consequência inevitável: era o deus de todos os homens. Quando ouviram falar em ressurreição de mortos, gozaram com a cara do apóstolo: “Acerca disso te ouviremos ainda outra vez”.

Isso sem falar que o deus dos judeus nada tem a ver com o deus dos cristãos. Para Arnold Toynbee, foi o cristianismo paulino que transformou Jesus em um deus encarnado. Em vida, Cristo não poderia ter aceitado essa condição, pois era judeu. Segundo as escrituras cristãs, por pelo menos duas vezes Jesus repudia a sugestão de que fosse divino. Pode ter se denominado Filho de Deus, mas isto não era algo aplicado somente a Jesus. Para Bart Erhman, a idéia de que Jesus era divino foi uma invenção ainda posterior, encontrada apenas no evangelho de João.

Para Erhman, ser o Filho de Deus não significava ser divino. “No Antigo Testamento, Filho de Deus pode se referir a vários indivíduos diferentes. O rei muito humano de Israel era chamado de Filho de Deus e a nação de Israel era vista como filho de Deus. Ser o Filho de Deus costumava ser o intermediário humano de Deus na Terra. O Filho de Deus tinha uma relação especial com Deus, como aquele que Deus escolhera para fazer sua vontade. Em Marcos, Jesus é o Filho de Deus porque é aquele que Deus escolheu como Messias, que deve morrer na cruz para fazer a expiação como um sacrifício humano. Mas não há uma única palavra nesse Evangelho sobre Jesus ser realmente Deus”.

Com o surgimento do Pai, do Filho e do Espírito Santo, a nova seita foi lentamente voltando ao politeísmo. É por pressão do imperador Constantino (306-337) – escrevi há pouco - que se cria nessa época dogma da Santíssima Trindade. Constantino precisava de um deus forte para seu império e adotou a nascente religião. Ao ver que o cristianismo estava resvalando rumo ao politeísmo, o imperador manipulou as discordâncias teológicas existentes entre Arius (Cristo é um ser criado) e Atanásio (Cristo é igual e eterno como seu Pai) e coagiu os bispos do império a assumir a doutrina de Atanásio. “Adoramos um só Deus em Trindade… O Pai é Deus, o Filho é Deus, e o Espírito Santo é Deus; e contudo eles não são três deuses, mas um só Deus”. O que deve ter dado origem, séculos depois, àquele aparelho de som da Gradiente, o três-em-um. O aparelho da Gradiente sumiu do mercado. O três-em-um do Atanásio continua tendo muita demanda. Mas isto já é outra história.

Resta ainda uma perguntinha. Se o Filho era tão eterno quanto o Pai, por que o Pai esperou tantos séculos para apresentá-lo a seu povo, os judeus? Ao entregar as tábuas da Lei a Moisés no monte Sinai, bem que Jeová podia ter avisado: "a propósito, eu tenho um filho. É rebelde e contestador, acho até que vou fazer um novo testamento".

Espero em algo ter contribuído para o conhecimento do Livro a Franciene.

* 29/08/2012