¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, março 25, 2013
 
Entrevista antiga:
SOBRE DEUS, ÉTICA
LEI E IDEOLOGIAS



P - Na entrevista anterior você disse que se formou em filosofia. Como esse blog é feito por alunos de filosofia, resolvemos fazer algumas perguntas mais difíceis, como por exemplo: "Se Deus está morto, tudo é permitido"?

R - Isso é uma bobagem que os católicos gostam muito de empunhar. Querem colocar Deus como fundamento de toda ética, como se não pudesse existir ética sem a crença em Deus. Com uma formulação um pouco diferente – “se Deus não existe, tudo é permitido” – esta frase é imputada a Dostoievski, em Os Irmãos Karamazov. Ora, ele jamais escreveu isto. Foi Sartre quem disse que ele havia escrito. Quem cita esta frase são geralmente pessoas que nunca leram Dostoievski e o citam de ouvir falar. Recentemente, me dei ao trabalho de reler Os Irmãos Karamazov para ver se Dostoievski havia realmente escrito tal bobagem. Não encontrei. O mais próximo que existe é isto:

- Ivan Fiodorovitch ajuntou entre parentêsis que lá está toda a lei natural, de maneira que se você destrói no homem a fé na sua imortalidade, não somente o amor nele perecerá, mas também a força de continuar a vida no mundo. Mais ainda, não existiria nada mais que fosse imoral; tudo será autorisado, mesmo a antropofagia. E não é tudo: ele acaba afirmando que para todo indivíduo que não crê em Deus nem em sua própria imortalidade, a lei moral da natureza deveria imediamente tornar-se o inverso absoluto da precedente lei religiosa; que o egoísmo, mesmo levado ao crime, deveria não somente ser autorizado, mas reconhecido como uma solução necessária, a mais razoável e quase a mais nobre. Após um tal paradoxo, julgai, senhores, julgai o que nosso caro e excêntrico Ivan Fiodorovitch julga bom proclamar e suas eventuais intenções.

Mais adiante, Mitia se pergunta:

- Mas então, que se tornaria o homem, sem Deus e a imortalidade? Tudo é permitido e, conseqüentemente, tudo é lícito? (...) Que fazer, se Deus não existe, se Rakitine tem razão ao pretender que é uma idéia forjada pela humanidade? Neste caso, o homem seria o rei da terra, do universo. Muito bem! Mas como ele seria virtuoso sem Deus?

Ou seja, a pergunta não é exatamente sobre Deus, mas sobre Deus e a imortalidade. E imortalidade significa punições e recompensas. Os teístas querem ver nos personagens de Dostoievski a impossíbilidade de uma ética sem Deus. No entanto, o que o autor empunha é a promessa de céu... ou de inferno. O fundamento de sua moral – ou da de Ivan Karamazov, como quisermos – não é exatamente Deus, mas a esperança ou o medo. Neste sentido, nós, ateus, não temos preocupação alguma. Não temos medo de nenhum inferno nem precisamos de recompensas futuras para sermos éticos. No fundo, o que o católico Dostoievski quer dizer é que todo ateu é necessáriamente imoral. E isto é uma solene besteira.

P - Existe um plano filosófico que é o plano ético, o qual geralmente está associado à moral. Todos sabemos que é possível agir moralmente (se encararmos a moral como uma série de normas elementares) e ser ateu ao mesmo tempo. Porém como fundamentar essa série de normas? Pois se ela são parte de preceitos de ação em sociedade arbitrários, por que alguém «deveria» segui-los? Ou seja, o dever não é uma mera arbitrariedade e, pois, tudo é permitido?

R - No plano filosófico não existe plano ético nenhum, isto é coisa dos primórdios da filosofia, quando esta disciplina englobava todo o conhecimento. Por filosofia entendo uma busca do saber, uma interrogação sobre o homem e sua finalidade. Ética é outra coisa, é o estudo dos costumes. Por outro lado, esta distinção entre ética e moral é bobagem muito em moda no Brasil. Ética é palavra de origem grega, vem de ethos. Que em latim é mores, daí moral. Cícero já escrevia: “posto que se refere aos costumes, que os gregos chamam ethos, nós costumamos chamar essa parte da filosofia uma filosofia dos costumes, mas convém enriquecer a língua latina e chamá-la moral”. Querer distinguir as duas coisas é filigrana de petista. Lula, por exemplo, adora encher a bocar com “ética e moral”, como se estivesse falando de duas coisas distintas, o analfabeto.

Não há sanções penais para normas meramente éticas. Ninguém está obrigado a seguir normas éticas. Pode haver uma sanção da comunidade, mas esta sanção não pode ferir a liberdade de ninguém. Se alguém infringe uma norma legal comete um crime e é passível de uma série de punições. Se alguém fere uma norma ética, caso esta norma não coincida com a legal, não está cometendo crime algum e portanto não pode ser punido. Dou um exemplo: ser homossexual, no Brasil, fere as normas éticas das religiões e de certos setores da sociedade. Mas não fere lei alguma. Ao optar pela homossexualidade, uma pessoa pode estar ferindo a ética – conforme a comunidade em que viva – mas não pode sofrer nenhuma sanção do Estado. O mesmo diga-se da prostituição e do incesto. Nenhuma destas práticas constitui crime na nossa legislação. O mal dos religiosos é pretenderem que suas concepções éticas tenham força de lei.

Se os religiosos ou moralistas outros quiserem estabelecer seus fundamentos éticos, que os estabeleçam. O que não podem é pretender que tenham validade universal e se imponham inclusive a pessoas que não participam de suas crenças.

Tudo é permitido em termos. Apenas tudo que a lei não proíbe. Só a lei pode proibir. Religiões só podem proibir alguma coisa para seus crentes. Estes crentes, se transgredirem tais proibições, não estão cometendo crime algum. Mas qualquer cidadão, crente ou ateu, se transgredir a lei, está cometendo crime. Temos de seguir a lei, pois assim determina o consenso que fundamenta o Estado. Moral, que cada um siga a que bem entender.

P - A lei humana é arbitrária ou existem direitos naturais, com os quais o homem já nasce? Se existem tais direitos, de que forma eles não são uma mera arbitrariedade? Pois seria possível dizer que o homem apenas estatuiu tais direitos arbitrariamente. Mas como fundamentá-los?

R - Quem faz a lei é o ser humano. Direitos naturais é conversa fiada de católicos e outros crentes. Não por acaso, Tomás de Aquino é um dos maiores defensores do jusnaturalismo. É curioso notar como os defensores do tal de direito natural sempre fazem com que tais direitos coincidam com valores cristãos.

Os defensores do direito natural o associam a um ordenamento ideal, correspondente a uma justiça superior e anterior, imutável ao longo da História, que independe do direito positivo, deste direito que se origina no Estado. Se aquele direito não se origina no Estado, se origina onde? Na vontade divina, é claro. Imaginar que a fonte seja a natureza é muito complicado. Que seria o tal de direito natural? O direito do leão de comer a gazela? O direito do albatroz de comer o peixe? Transferindo ao plano humano: o direito do mais forte submeter o mais fraco? Seria a guerra de todos contra todos.

Há quem pretenda que o direito se origine na racionalidade dos seres humanos. “Divertida justiça que um rio limita, erro aquém verdade além dos Pirineus”, disse um pensador francês, creio que Montaigne (agora não lembro). Se a racionalidade dos seres humanos for o fundamento do direito natural, este direito é então tão cambiante quanto o positivo.

Mas fundamentá-lo em Deus também é complicado. Em qual deus? No judaico-cristão? Ora, Jeová em seu livrinho não só pratica genocídios como também incita seu povo a cometer genocídios. Direito natural é uma concepção totalitária, que pretende submeter a humanidade toda a uma determinada visão de mundo. O que existe é o direito positivo, que muda conforme a geografia. Mas a lei humana não é arbitrária. Nas democracias, pelo menos, ela depende da vontade dos cidadãos e nela se fundamenta. Nas ditaduras, vai depender da vontade do ditador.

P - Qual é a sua visão a respeito do liberalismo político, econômico e ético? (por "liberalismo ético" tomar a idéia de que há liberdade para o aborto, para a união civil homossexual, para o uso de drogas, etc.)

R - Liberalismo político até hoje não entendi bem o que seja. Aqui no Brasil, por exemplo, há setores católicos que se pretendem liberais. Ora, por mais acepções que a palavra liberalismo tenha, ela não rima com Vaticano, dogmas, teocracia, governo vitalício. (Não sei se alguém notou, o Vaticano é a única teocracia do Ocidente). Se alguém me propuser uma definição precisa de liberalismo, posso tentar uma resposta.

Quando ao liberalismo econômico, se for entendido como um capitalismo ético e bem delimitado por leis, penso ser a melhor fórmula de administração do Estado. É claro que esse capitalismo não existe no Brasil. Vamos encontrá-lo nos Estados Unidos, Canadá, sociais-democracias européias, e isso com todas as imperfeições inerentes ao sistema. Em uma mentalidade capitalista, por exemplo, se procuraria dar trabalho aos pobres, e não esmola, como é o nosso caso.

Quanto ao liberalismo ético, se entendido como liberdade para aborto, união civil homossexual e uso de drogas, sou a favor. As restrições ao aborto e homossexualismo sempre estão eivadas de um ranço religioso. Se o catolicismo, por exemplo, não aceita o aborto e o homossexualismo, que os proíba para seus fiéis. Mas que não pretenda proibi-los para a sociedade laica. Quanto às drogas, sou a favor da descriminalização, que me parece ser a única fórmula eficaz para acabar com o tráfico.

As pessoas esquecem que crime é o que o Estado define como crime. Se o Estado não define aborto ou homossexualismo – ou o que quer que seja – como crime, estamos conversados: não é crime. Nos países mais desenvolvidos do Ocidente, aborto não é crime.

P - De que forma o liberalismo como um todo não é apenas mais uma ideologia como foi e ainda é o comunismo? Ou o comunismo não seria uma ideologia?

R - Depende do que se entende por ideologia. As acepções desta palavra são muitas, desde Desttut de Tracy que a criou – como sinônimo de ciência das idéias – até Marx e outros teóricos mais contemporâneos. Conforme a definição adotada, tanto liberalismo como comunismo podem ser considerados ideologias. Ou não.

Libertarian, dezembro 2006