¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, abril 03, 2013
 
DONOS DA HISTÓRIA


Desconheço a legislação sobre biografias nos demais países. Mas, pelo que tenho lido, o autor tem a liberdade de escrever o que bem entender sobre o biografado. Se este é vivo, obviamente pode processar o autor por eventuais calúnias. Se é morto recente, neste caso podem processá-lo seus filhos ou cônjuge. Se morreu há mil ou dois mil anos, pode-se escrever o que quiser que ninguém vai processar. Nem reclamar.

No Brasil existe mais uma jabuticaba na área da literatura. Se biografia de autor vivo ou morto recentemente publicar fato notório atribuído ao biografado, este ou sua família pode pedir a proibição do livro. Basta não gostar do fato notório.

A constituição diz que é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. Mas constituições são papéis pintados com tinta. A Constituição diz que casamento é entre homem e mulher. O STF, com um neologismo mal construído – homoafetividade – típico de pavão de toga que desconhece os rudimentos do grego, diz que homem pode casar com homem e mulher pode casar com mulher. A onstituição diz que todos são iguais perante a lei. Mas o STF diz que negro vale mais que branco na hora do vestibular. Tudo isso com o aplauso da imprensa, que na hora do politicamente correto esquece toda e qualquer noção de lei maior ou lógica menor.

Segundo o artigo 20 do Código Civil, em vigor desde 2003, sem autorização de herdeiros ou biografados, a publicação de informações ou imagens pode ser proibida se "atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade" de retratados. De uma penada, o Código Civil rasgou a constituição. Pelo jeito, nem os legisladores têm noção de lei maior e lei menor. A Justiça, em flagrante desrespeito à Carta Magna – que parece não ser lá muito magna - já proibiu a venda de obras como as biografias de Roberto Carlos, feita por Paulo César Araújo, e de Garrincha, escrita por Ruy Castro.

Leio na Folha de São Paulo que Paulo Cesar de Araújo, autor da biografia do cantor, defende a mudança no código. "Se continuar do jeito que está, vai ser impossível contar a história do Brasil. Se todos alegarem que a minha história é patrimônio meu, você só vai poder escrever sobre si próprio". Em entrevistas à época da proibição, Roberto Carlos disse que não houve censura: "Há um limite entre o que é de interesse público e o que é invasão de privacidade".

Para Thalita Alvarez, gerente de marketing da editora Planeta, que publicou o livro de Araújo, o caso foi emblemático para o setor. "Desde o episódio Roberto Carlos, nenhuma editora se arriscou a publicar biografias não autorizadas, já que ficou claro que o Judiciário prioriza o direito à intimidade em detrimento do direito de livre expressão".

Até Lampíão entrou no ror das proibições. O livro Lampião – o Mata Sete, do juiz aposentado Pedro de Morais, também foi proibido, por apresentar o cangaceiro tendo uma relação homossexual com outro membro de seu bando, Luiz Pedro.

Mais ainda, o livro também mostra Maria Déia, a Maria Bonita, como adúltera, pois teria se envolvido com Luiz Pedro, um outro cangaceiro. Na verdade, o livro induz um triângulo amoroso entre eles. Um outro fato contesta a paternidade da filha de Lampião e Maria Bonita, Expedita Ferreira de Oliveira Nunes, pois Lampião seria impotente, devido a um ferimento à bala recebido nos genitais no ano de 1922.

Os descendentes de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, ingressaram com ação judicial em Aracaju, e obtiveram, liminarmente, a proibição do lançamento e comercialização da obra. Para o advogado da família, Wilson Winne, “direito de liberdade de expressão tem um limite. Essa obra viola a invasão de privacidade. Ele é uma pessoa histórica. Quando se fala de Lampião, é da parte histórica. Que ele era violento, pistoleiro, herói ou bandido, mas neste caso atinge a honra da família. Está interferindo na vida da pessoa, de sua família”.

Ora, a vida íntima faz parte do personagem público. Aliás, o torna mais humano. É curioso ver como a família não se importa que vejam o ilustre ascendente como bandido. Mas entra em pane quando é visto como homossexual. Temos de alertar os jeans wda vida. Estamos diante de um caso manifesto de homofobia. Imagine o dia em que algum biógrafo escrever uma biografia não laudatória do Lula, desvelando seus segredos de alcova ou sua conivência com o mensalão. Proibição na hora. Quem perde é a História.

Leio no Estadão de hoje que a Câmara aprovou hoje projeto que permite as biografias não autorizadas. A proposta possibilita a divulgação de imagens, filmes ou publicação de livros biográficos sem a autorização do biografado ou de sua família quando envolver pessoas públicas. O projeto de lei aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) é de caráter conclusivo, ou seja, pode seguir para o Senado sem passar por votação no plenário da Casa, exceto se for apresentado recurso nesse sentido no prazo de cinco sessões.

Segundo o relator do projeto, deputado Alessandro Molon (PT-RJ), a proibição fere dois direitos, o da liberdade de expressão dos pesquisadores e autores e o direito à informação de toda a sociedade brasileira. "O conhecimento da história é um direito de todos e contá-la é um direito de cada um. À nação é negado o direito de conhecer sua própria história e a daqueles cujas vidas influenciaram o curso da história brasileira".

É de esperar para ver. Em um país que rasga a sua constituição ao sabor de modismos, difícil esperar que a consertem. E que o eventual biógrafo de Fernandinho Beira-Mar pense duas vezes antes de começar a escrever, para não perder seu tempo.

Sob pretexto de preservar a intimidade – como se intimidade fosse permissível a personagens públicos – biografados ou seu familiares se julgam donos da História. No que são avalizados pela Justiça.