¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, abril 22, 2013
 
DAMASCENO, O SINGULAR




Soube ontem – e com mais de semana de atraso – da morte do Aníbal Damasceno Ferreira, amigo e mestre de meus dias de Porto Alegre, que perde um de seus personagens mais singulares. É que meus amigos sobreviventes têm a péssima mania de não me transmitir más notícias. Assim que, só ontem, por mail do professor R. D. Castiglioni, fiquei sabendo do fato. Damasceno vinha há horas capeando com a Indesejada das Gentes e a notícia não me surpreendeu.

Tentei encontrá-lo em novembro, quando fui ao Ponche Verde, questão de mostrar meus pagos à minha filha. Não consegui. Há anos sua memória vinha rateando. Confessou-me certa vez que, quando ia para a PUC, o carro parava no sinal e ele já não lembrava para onde ia. Tentei passar-lhe alguns recursos mnemônicos, mas Damasceno os esqueceu. Marquei encontro no Tuim, por duas vezes, pedi que anotasse por escrito o nome do bar. Pelo jeito não anotou.

Damasceno foi um desses grandes vultos anônimos, que toda grande cidade abriga. Artífice discreto da cultura porto-alegrense, influenciou não poucos jovens com suas idéias peculiares. Entre eles, este que vos escreve. Foi um dos primeiros amigos que fiz quando cheguei à capital. Fui conhecê-lo na colônia de férias da URGS. Mal o vi, disse para a Baixinha, sei lá por quê: esse cara é radialista. Era. Trabalhava como sonoplasta na Rádio Universidade.

Passamos noites ao relento nas areias de Tramandaí, fugindo da vigilância de uma harpia da colônia de férias, que zelava pela castidade das universitárias nas dependências da colônia. Não podia namorar nos quartos? Pegávamos cobertores e íamos com as meninas para a praia, onde era muito melhor dormir. Depois disso, passei a freqüentar a universidade livre da Praça da Alfândega, em Porto Alegre.

A morte de Damasceno é também a morte de uma Porto Alegre que não mais existe. A praça da Alfândega reunia intelectuais, poetas (Quintana era um de seus assíduos freqüentadores), jornalistas e outros marginais. Varávamos as noites rumo à madrugada, discutindo desde a enteléquia aristotélica até esse estranho pendor que as mulheres têm pelos imbecis, como diria – e disse – Machado. Uma taça pão-e-manteiga na lanchonete do Matheus nos aquecia nas noites de inverno. Nas madrugadas de sábado havia um ritual a cumprir: pegar o Correio do Povo, que saía quente da gráfica e cheirando a querosene, para ler o Caderno de Sábado.

Certa vez, discutindo sempre o eterno feminino, vi pombas ciscando na calçada. Ué, pomba não é de andar à noite, como certas almas perdidas! Já era dia e não havíamos notado. “As mulheres são cruéis” – dizia um de meus interlocutores. Pode ser. Mas desta face das musas fui poupado.

Foi a melhor de minhas universidades. Ali, recebi bibliografias que nenhum curso acadêmico me deu. Assim como Dyonélio Machado me introduziu nas leituras de Renan, Damasceno foi meu guia nas leituras de Sterne, Thackeray, Swift e Casanova. Era pessoa de escassa formação escolar mas de grande cultura, particularmente no que dizia respeito à literatura inglesa. Freguês de livreta de Nelson Rodrigues, ensinou-me a distinção entre humor e piada, distinção que há muito se perdeu no Brasil, a ponto de se considerar humorista até mesmo um medíocre como Chico Anísio.

Machadiano irremediável, tentou introduzir-me também na leitura de Machado e de Guimarães Rosa. Claro que li os dois. Mas Damasceno era leitor militante, queria mais que leitura. Queria apreço. Nestes dois últimos casos, não levou.

Com meu afastamento de Porto Alegre, tornou-se meu correspondente passivo. Sempre lhe escrevi, onde quer que estivesse vivendo, Estocolmo, Madri ou Paris. Sem nunca receber resposta. Talento sobrava ao Damasceno. Mas tinha medo de emitir opiniões por escrito ou publicamente. Aceitei esta sua condição e nunca esperei retorno. Não responder era mais uma singularidade sua.

Nas últimas décadas, tentei introduzi-lo na era informática. Em vão. Como os de sua geração, Damasceno mantinha uma distância intransponível em relação ao computador. De nada adiantava dizer-lhe que facilitava a comunicação entre pessoas distantes. Em novembro passado, quando lhe falei de minhas publicações eletrônicas e das vantagens do e-book, respondeu-me um tanto cético com a época:

- É, qualquer dia o homem vai a Júpiter.

Não vai, não, Damasceno. É uma impossibilidade física. Mas os livros de tua época têm seus dias contados. O livro continuará existindo, mas com outro suporte. Livreiros e editores não gostam disto. Mas lutar contra o livro eletrônico é o mesmo que lutar contra o amanhecer. Não há sentido algum em investir 50, 100, 200 mil reais na publicação de um livro, quando este livro pode ser publicado a um custo próximo de zero, e pelo próprio autor, que dispensa a aprovação ou censura do editor.

Inseguro até a medula, Damasceno tinha medo até mesmo de sua própria defesa. Ontem, publiquei uma entrevista que extraí a fórceps. Nunca vi alguém sofrer tanto ao dar um depoimento sobre si mesmo. Damasceno sofria fisicamente, sua úlcera o corroía por dentro. É possível que seja a única entrevista que deu em vida.

Quando mostrei-lhe o artigo que escrevera em sua defesa, tremeu por dentro. Tens coragem de escrever tudo isso? Para mim não era uma questão de coragem. Nunca precisei de coragem para dizer o que penso. Sem falar que, quando brandimos o óbvio, coragem é virtude que não faz falta. Coragem intelectual, a meu ver, tinha o Niemeyer, que morreu defendendo Stalin. Coragem tem o Tarso Genro, que até hoje defende o Luís Carlos Prestes. Tornar pública a vigarice de Guilhermino César, que se pretendia o descobridor de Qorpo Santo, para mim era suprema diversão, puro lazer.

Eu tinha 21 anos na época, recém saía do curso de Filosofia. Guilhermino tinha 60 e, apesar de mineiro, era uma das sumidades da cultura gaúcha, graças à sua História da Literatura do Rio Grande do Sul. Na qual faltava – ó ironia! – o Qorpo Santo. Paulo Fontoura Gastal, o editor do Caderno de Sábado, fez-me aparar algumas farpas. Me garantiu que, caso o catedrático viesse com pedradas, eu podia me esbaldar. Fui chamado, pelo professor, de “malevolência imberbe”. Quando fui responder à “decrepitude careca”, o Gastal achou que o debate já ia longe demais e o interrompeu. Nunca foi tão fácil desmontar a farsa de um medalhão.

Por acaso, eu tinha um espião bem postado, era um universitário do Belas Artes que secretariava Guilhermino. Ri por uma semana quando ele me contou o episódio. Naquela manhã de sábado, o professor vestiu seu robe-de-chambre, pegou o Correião e se dedicou a ler, com deleite, o artigo que falava de “sua” descoberta. Aos poucos foi ficando lívido. “Vanda, traz os meus sais” – pediu. Música para meus ouvidos. Eu me sentia na Lisboa de Guerra Junqueiro. Só faltava uma boa bengala para temperar o debate.

Tinha teorias peculiares, o meu mestre. Uma delas era a dos três efes, que rendeu um filme a Carlos Gerbase. Segundo esta, três apetites regiam as ações do ser humano, a fome, a foda e o fasma. Confesso que não lembro o que seria fasma, mas segundo o Damasceno era um termo grego que significaria representação. Outra teoria sua, oriunda de Platão, era a da mijada na caverna. Nesta mijada estaria a origem do ordenamento social. Se não houvesse um lugar determinado para mijar, a caverna se tornaria um lugar imundo e infecto.

“Tu estás contra toda tua geração" - disse-me há décadas. Na época, eu não entendia isto. No que não deixava de ter razão. Mesmo assim, a frase me surpreendeu, afinal nunca tive vocação para original. Por geração, eu entendia nossos contemporâneos que lêem, escrevem, discutem e lutam por suas idéias. Panta rei. Nada como uma década depois da outra para se passar a entender o que antes era ininteligível. Só mais tarde, bem mais tarde, fui dar-me conta que minha geração era visceralmente marxista.

Damasceno era um de meus três últimos correspondentes neoluditas, aos quais eu ainda escrevia em papel. Semana passada ainda, escrevi ao Damasceno, contando minha viagem à Noruega. A carta veio de volta, com um carimbo do Sedex: mudou de residência. De fato, mudou.

Damasceno tinha imaginação fértil e escreveu muito. Deve ter não poucos inéditos no baú. Nestes dias de literatura insossa, podem constituir uma surpresa nas letras gaúchas, surpresa tão surpreendente quanto Qorpo Santo.

Amanhã, a contestação à “descoberta” do professor Guilhermino.