¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, abril 14, 2013
 
SOBRE BÍBLIA E BEST-SELLERS


Alguém citou Ernesto Sábato no Facebook: "Os best-sellers estão para a literatura como a prostituição está para o amor." Ao que reagiu Deonísio da Silva: “Caramba! E a Bíblia, o maior bestseller de todos os tempos, como fica? Gosto do Sábato, me correspondia com o argentino, mas será que é dele a frase? Vou perguntar ao seu tradutor, meu amigo Janer Cristaldo, que sabe tudo de Ernesto Sábato”.

Bom, não é que saiba tudo. Além disso, minha tese sobre sua obra data de 1981. E as traduções também pertencem ao século passado. Como também Sábato pertenceu visceralmente ao século passado. É um produto das discussões da época, que eu situaria basicamente entre 1917 e 1989, quando caiu o Muro. Em suma, a Guerra Fria. Em O Escritor e seus Fantasmas, analisando este fenômeno típico da civilização ocidental, o romance, pergunta-se por que outras culturas não deram lugar a este gênero literário. Propõe algumas respostas.

Primeiramente, ignorando os poderes irracionais e relegando-os a um mundo inferior, o racionalismo provoca sua reaparição no mundo da imaginação. Segundo fato, o cristianismo que, expulsando para as regiões inferiores os instintos básicos do homem, quebrando a harmonia do homem pagão com o cosmos, cria a consciência intranqüila. Como diz Pascal, o cristão é um enfermo. Terceiro fator, a tecnocracia. Transformando o homem em coisa e amontoando-o nas grandes cidades, ela acentua sua solidão e provoca uma necessidade de comunicação através da ficção.

Em quarto lugar, a falta de estabilidade social, produzindo um sistema fluído de classes (por oposição às sociedades de castas religiosas ou clãs, ou sociedades medievais, que são invariáveis), acentua o sentimento de fugacidade do ser humano, sua angústia e seu ressentimento. Vê-se aqui o gérmen da análise que Sábato fará mais tarde da cultura argentina, nascida de várias imigrações européias que chegaram à pampa, esta metáfora do nada.

Quinto, a mecanização da palavra que, substituindo o relato oral pelo livro lido solitariamente, permite maior aprofundamento e análise dos problemas. Esta introspeção tem suas raízes na mentalidade analítica e na solidão crescente da cultura científica.

Sábato assume a “clericatura” do escritor. O artista assume o papel de mártir. É o homem que, por sua revolta, continua não contaminado pelo meio ambiente. Interrogado se considera efetivamente a revolta como condição essencial para o criador de ficções:

— Evidentemente, se é grande, se não pratica essa fabricação de best-sellers de temporada, que hoje substitui em boa parte aquela missão sagrada que Jaspers menciona nos trágicos gregos, é um rebelde, um delegado das Fúrias, mesmo sem sabê-lo e, é claro, sem querê-lo.

Sábato vê a literatura como um ato sagrado. Perguntei-lhe certa vez se, nesta época publicitária, um livro poderia ainda preservar esta sacralidade.

— É difícil, com efeito, mas é possível. As religiões são por sua natureza mesma sagradas, mas devem lutar contra a dessacralização contínua que promovem as igrejas. Assim, surge certo tipo de religioso, talvez o mais profundo, que é, que tem de ser, anticlerical. As igrejas materializam a religião e a pervertem. Os místicos têm de voltar às fontes. O mesmo acontece com a literatura.

Sua concepção de literatura é das mais exigentes. Obviamente, como todo homem culto, não colocaria a Bíblia na vala comum dos best-sellers. Mas a Bíblia é um livro anômalo. Se por um lado é leitura fundamental para quem quer que pretenda entender o Ocidente, por outro é utensílio de vigarice para os fundadores de religiões caça-níqueis. Estes, certamente, constituem um mercado bem maior para o Livro do que os estudiosos. A Bíblia tem portanto esta dupla face: por um lado é livro fundamental na biblioteca de todo homem culto. Por outro, é livro que habita muito o sovaco dos pastores. Que, diga-se de passagem, da Bíblia pouco ou nada entendem. São hábeis em citar os momentos que podem servir para infundir medo do inferno e esperanças no Além. Mas ignoram o que no fundo significa o Livro.

Há não poucos taxistas em São Paulo que, mal entra um cliente no carro, querem divulgar a palavra divina. São coitados que repetem o que o pastor disse. Seguido encontro estes espécimes e aproveito para divertir-me um pouco. Há alguns anos, ouvi a pergunta que se sempre se repete:

- Você conhece este livro?
- Conheço, e bastante bem – respondi –. Que bíblia é a sua?
O homem quase teve um chilique.
- Como qual bíblia? Só existe uma bíblia.

Expliquei que existiam muitas, desde a judaica à cristã, passando por toda essa gama de crenças que, como a dos cristãos, se apoderaram do livro dos judeus. Cada crente puxava brasa pra seu assado. Mais ainda – acrescentei – cada tradução é uma bíblia diferente. O animal foi taxativo: Bíblia só existe uma só.

O pobre diabo não tinha a menor idéia de que a Bíblia fora escrita há mais de dois mil anos, em época em que o idioma daquela que ele empunhava sequer existia. Para ele, a Bíblia havia sido escrita em português. Jamais lhe passaria que se fosse uma só, ele não poderia lê-la. O taxista representava larga faixa dos leitores do Livro.

Sábato falava certamente desses best-sellers instantâneos. A Bíblia - ou o Quixote - são best-sellers ao longo dos séculos. Jamais constarão das listas de mais vendidos. Pode um best-seller coincidir com um livro bom? Há leitores que acreditam que sim. Um exemplo citado é o 1984, do Orwell. Mas duvido que em seu lançamento tenha tido tiragens fantásticas. O livro é de 1948 e desde lá vende sempre. Quando falo em best-seller, me refiro aos paulos coelhos da vida. Se o autor encabeça hoje a lista dos mais vendidos, quando morrer morrerá de vez. Quem ainda lembra de Lobsamg Rampa, Carlos Castañeda, Erich von Däniken? Foram campeões de venda na segunda metade do século passado. Hoje, só quem tem mais de 50 anos tem alguma idéia destas nulidades.

Em O Escritor e seus Fantasmas, Sábato considera como grande literatura a que se propõe investigar a condição humana. Mas “a investigação feroz. A ausência de ferocidade já me faz duvidar sobre o autêntico propósito desse investigador. Se um homem não equaciona este problema com indignação, se um escritor não está impelido por uma despiedada fúria contra Deus ou contra o Nada, dificilmente terá possibilidades – ou vontade – de atravessar o abismo”.

Nestes ensaios sobre a condição do escritor, Sábato apoia-se em Donne, quando este diz que ninguém dorme na carroça que o leva da prisão ao patíbulo e, no entanto, todos dormimos desde a matriz até a sepultura, ou pelo menos não estamos totalmente acordados. “Uma das grandes funções da literatura: despertar o homem que viaja rumo ao patíbulo”.

Ou seja, o conceito de literatura do pensador de Santos Lugares era bem mais excludente que o de qualquer crítico literário contemporâneo. Em Sobre Heróis e Tumbas, através de Bruno, Sábato expressa o drama e a função quase sacerdotal do escritor. Em um extenso testemunho, Bruno percebe que só se punha a escrever quando se sentia só, infeliz ou desajustado em relação ao mundo. Esta necessidade não acomete, por exemplo, aos animais, cujas vidas transcorrem sem angústias.

“O homem, ao levantar-se sobre as duas patas traseiras, ao converter em machado a primeira pedra afilada, instituiu as bases de sua grandeza mas também as origens de sua angústia. Com suas mãos erige essa construção tão poderosa e estranha que se chama cultura e assim começa seu extravio. Deixou de ser um simples animal mas não chegou a ser o deus que seu espírito lhe sugere.

"Este ser dual e desgraçado se move e vive entre a terra dos animais e o céu de seus deuses, perdeu o paraíso terrestre de sua inocência e não ganhou o paraíso celeste de sua redenção. As mãos, e depois aquele machado, aquele fogo, mais tarde a ciência e a técnica irão cavando o abismo que o separa de sua raça originária e de sua felicidade zoológica. A cidade será finalmente a última etapa de sua louca carreira, a expressão máxima de seu orgulho e a máxima forma de sua alienação.

"E então seres descontentes, um pouco cegos e enlouquecidos, tentam recuperar às apalpadelas aquela harmonia perdida com o mistério e o sangue, pintando ou escrevendo uma realidade distinta da que infelizmente os rodeia, uma realidade amiúde de aparência fantástica e demencial mas que, coisa curiosa, é mais profunda e verdadeira que a cotidiana. E assim, sonhando um pouco por todos, esses seres frágeis conseguem erguer-se sobre sua desventura individual e se convertem em intérpretes e mesmo em salvadores (dolorosos) do destino coletivo”.

É um pouco diferente de escrever por vaidade ou dinheiro. Esse tipo de escritor parece ter morrido com o século passado.