¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, maio 19, 2013
 
ÓRFÃOS DE THOREAU


Modas bobas com foros de sabedoria é o que não falta na imprensa. A última parece ser a da penúria como modo de vida. Em artigo para o jornal Valor Econômico, leio sobre um escritor carioca que, criado em um apartamento de 600 metros quadrados na Barra da Tijuca, no Rio, cresceu tendo para si um quarto com mais de 20 metros quadrados. Hoje vive em um apartamento pouco maior do que isso. Nos 22 metros que ocupa, em Copacabana, são poucos os móveis e objetos e, se há um sofá e uma rede, não há espaço para uma cama. Nem gavetas nem armários, exceto um pequeno, de limpeza.

Além de três pares de sapatos, seus pertences são outros três de Havaianas, três calças, uma camisa, 12 camisetas (número aproximado), dois casacos, um blazer, dois jogos de toalhas, dois de cama, alguns utensílios de cozinha, um notebook, um Kindle, um celular e uma câmera digital. Poderia ser uma história de ruína financeira, mas se trata de um fenômeno cada vez mais observável. Castro aderiu a um estilo de vida minimalista.

Confesso que até hoje não entendi o que queira dizer minimalista. Nem ninguém conseguiu explicar-me. A palavra pretende significar tantas coisas que acaba não significando nada. É o mesmo que holística, palavrinha que geralmente vem acoplada a picaretagens. Mas admitamos que minimalista, no caso, tenha o prosaico significado de viver com o mínimo necessário.

Pra começar, o escritor tem algumas posses a mais do que eu, a saber, 12 camisetas, um blazer e dois casacos. Não tenho nenhum destes itens e vivo muito bem. Utensílios de cozinha e celular, os tenho porque herdei da finada. Não como em casa nem utilizo o celular. Quanto a viver sem gavetas, os despojados que me desculpem. As gavetas foram um dos grandes momentos da criatividade humana e viver sem elas é conviver com o caos. Quanto a viver num ap de 22 metros quadrados podendo viver num de 600, sem espaço para uma cama, isto já é estar de mal com o mundo. Como receber uma visita, um amigo, uma amiga, um parente?

E a biblioteca do escritor onde fica? Ou será um escritor tão minimalista que nem biblioteca tem? Ou a terá no Kindle? Mas nem todos os livros que necessitamos têm versão digital. Pelo jeito, o escritor não preserva a memória. Mesmo na era digital, memória ocupa espaço. São os objetos pelos quais temos apreço estético ou valor afetivo, presentes de pessoas queridas, ornamentos que tornam nosso entorno mais aconchegante.

A reportagem opõe esta opção – vá lá! – minimalista ao consumo. “Histórias como a dele se contrapõem a um fenômeno: somos acumuladores. Não é preciso recorrer a casos extremos de pessoas que vivem cercadas pelo próprio lixo. Em um estudo da Universidade da Califórnia, antropólogos submergiram por nove anos na vida de 32 famílias de classe média americanas. Fotografaram cada objeto que entrava nas casas, registrando o atulhamento. Constataram que gerenciar a quantidade de tralhas acumuladas é uma das prioridades de qualquer morador adulto e que há uma curiosa correlação entre a bagunça de ímãs e bilhetes na porta da geladeira e do resto da casa. E a melhor de todas: 75% das garagens estavam tão lotadas de quinquilharias que já não permitiam a entrada dos carros”.

Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Isso de cercar-se de lixo é uma perturbadora doença urbana e já a vi de perto. Em meus dias de Paris, encontrei uma uruguaia, que se pretendia refugiada política. Conversa daqui, conversa dali, ela convidou-me para ir até a sua casa. Casa? - perguntei. Em Paris não há casas. Ela insistiu que morava em uma casa. Paguei para ver.

De fato, era uma casa, mais precisamente um sobrado, situado no centro de uma cour. Mal entrei não acreditei no que via. O lixo infestava todo o térreo, empilhado até a altura dos ombros. Por um estreito corredor em meio à muralha de lixo, chegava-se até a cozinha, onde se abria um espaço de uns dois metros quadrados para uma mesa e duas cadeiras. Ao sentar-me, minha cabeça ficou um pouco abaixo do nível de lixo. Um outro corredor levava até o banheiro.

Por uma escadaria também atulhada de lixo, ela subiu ao primeiro piso para trocar-se. Pediu que eu não subisse: "Aqui está pior". Saí voando daquela casa. É claro que não voltei a revê-la. Se a casa era aquilo, fiquei me perguntando como seria a cabeça da moça. Isto nada tem de novo. Seguidamente os jornais nos falam de pessoas que vivem em meio a um lixo laboriosamente juntado vida afora, e às vezes são mesmo soterradas pela tralha toda.

A reportagem nos fala de Andrew Hyde, escritor e consultor de "startups", que desistiu do apartamento onde acumulava coisas de uma vida toda. Primeiro, reduziu todos os pertences a cem itens. Concluiu: ainda era demais. Em agosto de 2010, pôs à venda quase tudo e ficou com apenas 15 coisas. Desde então, é o máximo de objetos que se permite ter. Descoberto por um radialista, ficou famoso. Aproveitou a notoriedade e, com itens como uma mochila, um par de camisas (veste uma a cada dois dias), um iPhone e uma toalha, viajou por 15 países, inclusive o Brasil no segundo semestre de 2012, reunindo histórias para o livro 15 A Modern Manual - 15 Countries with 15 Things (Um manual moderno - 15 países com 15 coisas").

Por que 15? Por que não 13? Ou 17? Pelo jeito, o escritor estava buscando mídia. Uma vez famoso por sua mania, saiu a viajar pelo mundo. Com 15 coisas, é claro. Mas viajar pelo mundo nada tem de minimalista. Por mais barato que custe, custa bastante. E viajar não é morar. Para viajar, 15 coisas é um conforto.

Valor fala ainda da alemã Heidemarie, que viveu sem dinheiro por 15 anos até ser descoberta pela BBC e virar tema do documentário: aposentada e autora de três livros, ela doa tudo o que ganha para a caridade. "É um processo de anos. Você vai percebendo que precisa de menos coisas. Que não precisa de dez calças, de dez pares de sapatos. Que não precisa ter na estante todos os livros que leu", diz Alex Castro. Ele se preocupa agora em manter o estilo de vida espartano também no mundo digital. "Não guardo filme algum. Sempre que assisto, apago."

É uma idéia. Não é fácil virar tema de documentário da BBC. Ela pode até ter encontrado uma fórmula de viver sem dinheiro, apelando ao escambo ou à troca de serviços por comida ou roupas. Mas o substrato do mundo no qual vive sem dinheiro é justamente o dinheiro. Sem dinheiro, não se produz sequer um grama de comida.

A reportagem cita também o inglês Mark Boyle, ex-dono de duas empresas de comida orgânica, formado em economia, que decidiu, em 2008, que dava para viver sem dinheiro. Na Inglaterra, uma série de artigos para o jornal The Guardian, que o batizou de "o homem sem dinheiro", fez dele uma celebridade. Vive em um trailer velho, que ia ser jogado fora, no Sudoeste da Inglaterra, plantando a própria comida e usando baterias solares para recarregar o celular e o notebook. Cozinha em um forno a lenha com a madeira que colhe na floresta. Depois de um ano da experiência, escreveu um livro, The Moneyless Man: a Year of Freeconomic Living (O homem sem dinheiro: um ano vivendo na economia livre), em que conta como foi a experiência. "Foi difícil nos primeiros dois ou três meses. Tudo era novo para mim, mas, desde então, ficou mais fácil e é o período da vida em que mais me senti livre", diz.

Ao que tudo indica, uma certa imprensa quer transformar indigência em saber viver. Vai ver que os tempos se tornaram bicudos e é preciso valorizar o pouco que se tem. Quando assim escrevo, até pareço um acumulador contumaz. Nada disso. Disponho de bastante espaço para viver, muito menos do que quando vivia no campo, bem entendido. Já pensei em viver em Paris. Até poderia. Mas não teria grana senão para um pequeno studio, onde não caberia nem a quarta parte de minha biblioteca.

Já vivi assim em Paris. Mas não era o projeto de uma vida toda. E tinha juntado apenas uns 500 livros, os demais tinham ficado aqui. O maior obstáculo que sempre me impediu de morar em Paris ou Madri é o preço do metro quadrado. Melhor então viver aqui e passar alguns meses lá. Vivo com pouca coisa, mas não me disponho a separar-me de meus livros. E eles exigem espaço.

Nada de novo sob o sol. Estes pretensos despojados, que buscam a fama sem a alavanca do dinheiro, são em verdade os órfãos contemporâneos de Henry Thoureau, o utopista americano que se dedicava inclusive a confeccionar sua própria roupa. Não passam de malucos pedantes, que pretendem começar de zero, renegando assim todo labor humano que torna esta vida tão breve pelo menos confortável.