¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, maio 09, 2013
 
O JABÁ PERMISSÍVEL


"Viagens pagas já faz tempo, no ambiente editorial mundial e mesmo brasileiro, são consensualmente julgadas inaceitáveis eticamente", lembra Paulo Nogueira, diretor do Diário do Centro do Mundo. Ele destaca neste domingo que o Supremo Tribunal Federal pagou a viagem de repórter do jornal O Globo à Costa Rica, para acompanhar o presidente do STF, Joaquim Barbosa.

Pela primeira vez, tomo contato com este diário. Paulo Nogueira parece ter descoberto a América. Desde que me conheço por gente, as viagens pagas são vistas nas redações como uma espécie de jabá permissível. Vamos ao texto de Nogueira:

Eis um caso inaceitável de infração de ética de mão dupla. Um asterisco aparece no nome da jornalista do Globo que escreve textos sobre Joaquim Barbosa em falas na Costa Rica. Vou ver o que é o asterisco.

E dou numa infração ética que jamais poderia acontecer no Brasil de 2013. A repórter viaja a convite do Supremo. É um dado que mostra várias coisas ao mesmo tempo. Primeiro, a ausência de noção de ética do Supremo e do Globo.

Viagens pagas já faz tempo, no ambiente editorial mundial e mesmo brasileiro, são consensualmente julgadas inaceitáveis eticamente. Por razões óbvias: o conteúdo é viciado por natureza. As contas do jornalista estão sendo bancadas pela pessoa ou organização que é central nas reportagens.


Quase todos os grandes jornais brasileiros têm jornalistas viajando pagos por empresas ou instituições. Cansei de ver isto, tanto na Folha de São Paulo como Estadão. Não é preciso estar na redação para constatar. Os editores consideram a prática tão normal que a anunciam no pé do texto. Veja as reportagens sobre cinema ou turismo. O jornalista que as assina é quase sempre convidado de produtoras ou distribuidoras de cinema, de empresas aéreas ou marítimas, ou de agências de turismo.

O que explica os hotéis e restaurantes caríssimos que os suplementos de turismo propõem, pois os patrocinadores sempre oferecem aos jornalistas o filé das viagens. Filés em termos relativos, pois pode-se viajar muito bem sem pagar caro. Fica também explicado porque os críticos nacionais dedicam páginas e páginas a abacaxis como Avatar, Batman, Homem de Ferro, Homem Aranha. Quem perde é o bom cinema, que não tem como financiar viagens.

Continua Paulo Nogueira:

De volta à viagem de Costa Rica. Quando ficou claro que viagens pagas não podiam ser aceitas eticamente, foi a Folha que trouxe uma gambiarra ridícula. A Folha passou a adotar o expediente que se viu agora no Globo: avisar que estava prevaricando, como se isso resolvesse o caso da prevaricação.

(...) Durante muito tempo, as empresas jornalísticas justificaram este pecado com a alegação de que não tinham dinheiro suficiente para bancar viagens. Quem acredita nisso acredita em tudo, como disse Wellington. Veja o patrimônio pessoal dos donos da Globo, caso tenha alguma dúvida. É ganância e despudor misturados – e o sentimento cínico de que o leitor brasileiro não repara em nada a engole tudo.


A verdade é que o leitor brasileiro, de modo geral, não repara em nada e engole tudo. Prova disto são as salas lotados com a exibição de blockbusters e os milhões de clientes de excursões organizadas, a forma mais burra de viajar. Quando até mesmo intelectuais aplaudem idiotices como Homem de Ferro e visitam a Disneylândia, que se pode esperar do leitor indefeso?

Há cinco anos, eu comentava estas corrupções. Julia Contier, do Estadão, moça que viajou a convite do tal de Great Brazil Express, picaretagem criada por dona Marta Teresa Smith de Vasconcelos Suplicy, anunciava um pacote da empresa.

O champanhe começa a ser servido às 9 horas aos turistas instalados em vistosas poltronas de couro estofadas com penas de ganso. Volta e meia, os comissários de bordo oferecem comidinhas para enganar a fome. Pela janela - emoldurada com cortinas de seda -, corre a paisagem do interior do Paraná. A rotina será mais ou menos essa nos próximos 500 quilômetros da viagem entre Ponta Grossa e Cascavel a bordo do Great Brazil Express, primeiro trem turístico de luxo do País.

O país não dispõe de uma rede ferroviária decente para seus cidadãos e oferece a estrangeiros um trem de luxo. O pacote de dez dias entre o Rio e Foz do Iguaçu custava R$ 7.763,25 por pessoa, em acomodação dupla. O valor subia para R$ 8.181,25 entre julho e agosto. Respectivamente, na cotação de então, 2.865 e 3.019 euros. Por pessoa. Total por casal: 5.730 e 6.038 euros. Mais ainda: não há cabines para pernoite no trem nem vagão restaurante. A repórter colocava nas nuvens esta roubalheira. Retribuiu com lealdade sua paga. Quem perde é o leitor babaca que cai em tais embustes. Na época, naveguei cinco dias pelas costas da Noruega, com a Primeira Namorada. Entramos em fjordes mágicos, entre eles o Trollfjorden, de apenas dois quilômetros, mas de uma beleza estonteante. Fizemos escalas em vários portos, Ålesund, Trondheim, Bodø e finalmente Tromsø, cidades charmosas e cheias de cores, com restauração sofisticada.

Navegamos por uma geografia louca. Atravessamos as ilhas Lofoten, de perfis deslumbrantes, particularmente quando iluminadas pelo sol da meia-noite. Viajamos em cabine dupla, confortável, com camas e banho. Nosso navio, o Vesterålen, era um tanto antigo – datavsa de 1983, mas foi reformado em 1995 – e tem uma magnífica sala panorâmica e um excelente restaurante. Não tem poltronas de couro estofadas com penas de ganso. Mas viajo mil vezes pela Hurtigruten, mesmo pagando, e jamais viajarei pelo Great Brazil Sacanagem, mesmo que fosse de graça.

Preço? 1.606 euros. Pelos dois. Viajamos em plena estação alta e por um dos países mais caros da Europa. Islândia à parte, a Noruega é o país mais caro do continente. Digamos que viajássemos dez dias. O preço seria ainda menor que o pago - por uma só pessoa - pelo desconforto de um trem sem cabines para pernoite nem restaurante, nem camas, nem banhos, pelo interior sem graça do Paraná. Trem de um país pobre, de salário mínimo de duzentos e poucos dólares.

Voltando à viagem à Costa Rica. Pergunta-se Nogueira:

- E o Supremo, não tem noção disso? É o dinheiro público torrado numa cobertura jornalística que será torta moralmente, é uma relação promíscua – mídia e judiciário – alimentada na sombra.

Certamente tem. Mas afinal é a praxe nacional. Como dizem os petistas sobre o caixa 2: todo mundo faz. E se todo mundo faz, pecado não há de ser.