¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, junho 03, 2013
 
UMA ESPÉCIE EM EXTINÇÃO (II)


Vamos ao artigo de David le Breton:

“O barulho é um som de valor negativo, uma agressão ao silêncio ou simplesmente à tranquilidade necessária à vida em comum. Causa um incômodo àquele que o percebe como um entrave a seu sentimento de liberdade e se sente agredido por manifestações que não controla e lhe são impostas, impedindo-o de repousar e desfrutar sossegadamente de seu espaço. Traduz uma interferência dolorosa entre o mundo e o eu, uma distorção da comunicação em razão da qual as significações se perdem e são substituídas por uma informação parasita que provoca desagrado ou aborrecimento. O sentimento do barulho surge quando as sonoridades ambientes perdem sua dimensão de sentido e se impõem como uma agressão irritante, da qual não há como se defender. Mas o sentimento do barulho põe em relevo, antes de mais nada, um contexto social e a interpretação que o indivíduo faz do ambiente sonoro em que se encontra. Às vezes, o mesmo som é inversamente percebido por outra pessoa como um invólucro sonoro que lhe é indiferente. O barulho não tem objetividade; trata-se de mera sensibilidade individual”.

De fato. O que para mim é barulho, para outro pode ser harmonia. Sem ir mais longe, o rock. Rock, para mim, é a mais contundente expressão do barulho. Para milhões de jovens contemporâneos, é a música das esferas. Assim, quando me perguntam qual deva ser o fundo sonoro de um restaurante, respondo: o silêncio. O fundo sonoro que me agrada pode ser uma tortura para o vizinho de mesa. Por outro lado, o som de vozes, em princípio, não me incomoda. A verdade é que a indústria contemporânea dos sons impôs os decibéis como critério de música. Os shows e audições de rock estão ensurdecendo, literalmente, os jovens. Que pouco ligam para os alertas de médicos, afinal sentem a necessidade de ser modernos.

Tenho hoje como vizinha uma mezzo soprano. Seu marido é regente de orquestra. Seguidamente sou invadido pelos trinados da diva. O que só alegra meus dias. Para outros, suas árias talvez constituam um ruído infernal. Eu adoro. Se bem que uma amiga musicista me alertou: tens sorte de não ter como vizinha uma soprano. Pode ser.

Em uma época em que o silêncio imperava, já dizia Schopenhauer: o nível de ruído que uma pessoa suporta, dizia, é inversamente proporcional à sua inteligência. Nossa época que o diga. O homem contemporâneo, só por ser contemporâneo, não tem nenhuma superioridade moral sobre o homem do medievo ou de antes de Cristo. Três séculos antes do judeu aquele, houve na Grécia uma explosão de gênio que até hoje não vimos repetida. O conhecimento da humanidade pode ter se multiplicado, mas Platão continua escrevendo melhor que Tarso Genro ou Marilena Chauí.

A pesar do avanço do conhecimento, de Platão para cá, a humanidade só tem emburrecido. Leia os Diálogos. Tratam de filosofia, mas são inteligíveis, claros, de linguagem límpida. Leia Sartre ou Heidegger. É uma floresta escura onde o leitor se perde já na entrada. A propósito, conta Simone de Beauvoir em suas memórias que um dia Sartre contou-lhe sentir-se muito feliz por ter escrito um período que nem ele entendia. Volto ao silêncio.

“O sentimento do barulho se difundiu sobretudo com o nascimento da sociedade industrial – e a modernidade o intensificou de maneira desmesurada. O desenvolvimento técnico caminhou de mãos dadas com a penetração ampliada do barulho na vida cotidiana e com uma crescente impotência para controlar os excessos. Novos sons adentraram os apartamentos com o rádio, a televisão, os eletrodomésticos, o telefone, os aparelhos cada vez mais possantes de reprodução musical, etc. E isso no interior de apartamentos ou casas que não foram projetados para represar esses ruídos, sem os impor à vizinhança, degradando assim a tranquilidade do lar. Do mesmo modo, as casas suportam mal as infiltrações sonoras provenientes das ruas adjacentes. Embora sejamos capazes de abstrair os outros sentidos, espantando um odor ou fechando os olhos diante de um espetáculo pouco agradável, a audição resiste a tudo. O sentimento do barulho é a consequência disso”.

É uma invasão contra a qual é difícil qualquer defesa. Prédios e casas antigas, com suas paredes espessas, estavam a salvo desta invasão. Não é o caso da arquitetura contemporânea. Nem mesmo da antiga, diga-se de passagem. Paris, cujos prédios não datam exatamente de ontem, tem paredes que parecem cascas de ovo. Por isso o silêncio é mais imperioso. A qualquer fiozinho de música, o parisiense chama a polícia. Várias vezes fui visitado pelos flics, e não havia som nenhum em meu apartamento, a não ser o de vozes. Em tom normal, bem entendido.

Outra característica de Paris é o escasso ruído de seu trânsito. Se você é distraído, arrisca ser atropelado por um ônibus. Pois os ônibus são silenciosos como um felino atrás de sua presa. O que não ocorre nas nossas capitais. Um ônibus só polui sonoramente toda uma quadra.

Volto a Florianópolis. Muitas coisas abominei naquela ilha inculta, mas a mais abominável sem dúvida alguma foi estar em uma praia silenciosa, quando chega um animal urbano com seu carro, abre as portas e lhe joga toneladas de decibéis na cara. O volume do som tornou-se uma questão de status. Quando mais decibéis ele emite, mais charmoso se sente. Tente reclamar. Ele julgará que você está atentando contra os direitos humanos.

Talvez seja coisa de ilhas, onde a civilização custa a impor-se. Em Lesbos, na Grécia, entrei certa vez em um corredor polonês sonoro capaz de aturdir até mesmo um surdo. Em uma estreita ruela, dezenas de bares emitiam rock ou ruídos similares a pleno vapor. Se você ia buscar Mikis Theodorakis ou Melina Mercouri, errou de geografia. Percorri a rua até o fim, só para sentir como se sentiam os turistas que lotavam os bares. Difícil entender aquilo, não era fácil ouvir sequer a Baixinha, que vinha a meu lado. Eu estava 23 séculos depois da Atenas de Platão, Sócrates, Aristóteles e Alexandre.

“À profusão de barulhos produzidos pela cidade, à circulação incessante dos automóveis, nossas sociedades acrescentam novas fontes sonoras com os televisores ligados e a música ambiente que toca no interior das lojas, dos cafés, dos restaurantes, dos aeroportos, etc., como se fosse preciso afogar permanentemente o silêncio em lugares onde a palavra se troca no interior de um universo de sons que ninguém escuta, que enervam às vezes, mas que teriam o benefício de emitir uma mensagem tranquilizante. Antídoto ao medo difuso de não se ter o que dizer, infusão acústica de segurança cuja súbita ruptura provoca um desconforto redobrado. A música ambiente tornou-se uma arma eficaz contra certa fobia do silêncio. Esse persistente universo sonoro isola as conversas particulares ou encobre os devaneios, confinando cada um em seu espaço próprio, equivalente fônico dos biombos que encerram os encontros em si mesmos, criando uma intimidade pela interferência sonora assim forjada em torno da pessoa”.

Fobia, medo ao silêncio. Eu iria mais longe que le Breton. Diria que o homem contemporâneo tem medo de ouvir sua própria voz. O silêncio induz ao pensar e pensar muitas vezes é doloroso. Já vi pessoas completamente confusas em um ambiente silencioso. O silêncio machuca. O barulho funciona como anestésico.

“A modernidade inventou a constância da sonoridade e a capacidade de propagá-la por meio de alto-falantes. O sujeito que não suporta o silêncio tem a oportunidade de recorrer, na totalidade de fatos e gestos da vida cotidiana, a um ruído de fundo. Ao chegar em casa, pode ligar seu rádio ou sua televisão, pode assistir um vídeo ou escutar uma fita cassete ou um CD. O barulho tem um efeito narcótico tanto no interior do apartamento, como no meio da rua, ele tranquiliza quanto à permanência de um mundo sempre incólume. Projeta uma linha de audição controlável e reconhecível, à maneira de uma tela que põe fim à turbulência e à profundidade perturbadora do mundo”.

Que se vai fazer? Este é o homenzinho produto dos dias de hoje. Silêncio virou mercadoria rara e cara. O ruído é muito latino. Já o silêncio é mais nórdico. Ou era. Por exemplo, esta mania nossa de buzinar e berrar e soltar foguetes durante os jogos de futebol. Vivi pelo menos dois períodos de eventos futebolísticos na Europa, e não vi nada disso.

O primeiro foi a Copa de 78, quando eu vivia em Paris, Algumas televisões nos bares, franceses torcendo com discrição. Quando jogavam os azuis, discretas manifestações de apoio, tipo “allez, les bleus”, “c’est bon!”, “c’est bon ça!” Não ouvi foguetes nem buzinas nem gritarias. Nem vi franceses uniformizados.

O segundo foi em 2000, durante uma Eurocopa. Já foi um pouco diferente. Caí em Oslo em um feriadão. Fui comer em um boteco imenso, em meio a uma praça e encontrei, para minha surpresa, oito telões. Com futebol, é claro. A impressão que tive é que havia chegado ao Brasil. Mas os noruegueses não faziam escândalos a cada gol, nem estavam fantasiados de noruegueses. Na ocasião, passei por mais quatro países e nada vi que cheirasse a fanatismo. Ou seja, futebol naquelas bandas não é a pátria de chuteiras.

O legado perverso das copas, que noto na Europa, foi a televisão nos cafés. Chegaram durante as copas e foram ficando. Seja como for, o norte é sempre mais civilizado. Enquanto a televisão está se tornando onipresente no sul do continente, nos países nórdicos é mais rara.

“Aos olhos de uma lógica produtiva e comercial, o silêncio não serve para nada, ocupa um tempo e um espaço que poderiam se beneficiar de um uso mais rentável. Para a modernidade, o silêncio é um resíduo à espera de utilização mais lucrativa, assemelha-se a um terreno baldio no centro da cidade, representa uma espécie de desafio lançado ao imperativo de torná-lo rentável, de fazê-lo retribuir com uma utilidade qualquer, pois, enquanto não o faz, o silêncio é pura perda. Anacrônico, um domínio onde o barulho ainda não penetrou, o silêncio é um arcaísmo que precisa encontrar seu remédio. Soa como uma pane ensurdecedora do sistema. O silêncio é um resto, aquilo que o barulho ainda não conseguiu invadir ou degradar, aquilo que os meios ou as conseqüências das técnicas ainda poupam”.

Em verdade, o que mais tem matado o silêncio nos últimos anos é o comércio. Ultimamente, pelo menos no Brasil, um insólito tipo de comércio tem tornado as cidades mais barulhentas. É a venda da salvação da alma. Os templos evangélicos – com um olho cúmplice das autoridades que sabem que tais templos constituem valiosos redutos eleitorais – têm infestado os bairros com exorcismos em altos brados. Ai de quem morar perto de um desses templos. Pelo jeito, os evangélicos acham que o demônio é surdo. Só pode ser expulso dos endemoniados aos berros.

Falar nisso, se você gosta de silêncio, já vá comprando passagem para o ano que vem. Junho e julho serão infernais. Fuja. Se bem que sempre resta aquela pergunta que feita em Invasores de Corpos - Invasion of the Body Snatchers - de Philip Kaufman. O filme trata de alienígenas que estão invadindo os corpos dos humanos em todo o planeta. Quando o personagem fala em fugir, a mocinha, já invadida, pergunta com a voz rouca dos infectados:

- Fugir para onde?