¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, julho 26, 2013
 
O BOM LIVRO


A propósito da crônica de ontem, um leitor me faz uma singela pergunta. Singela porém complexa: o que é um bom livro? Para começar, o conceito de bom é relativo. Há quem ache caju bom. Eu não suporto. Há quem se deleite com Paulo Coelho. Eu não consigo ler nem cinco frases. Canso. Só me resta então falar do que considero, de meu ponto de vista, um bom livro.

Para começar, tem de ser bem escrito. Escritor que escreve mal é mau caráter, dizia o implacável Agripino Grieco. No que tem toda a razão. Quem não domina o ofício não devia se meter no assunto. Toda grande obra é bem escrita. Leia os Diálogos de Platão. Escritos há 2.300 anos, são de uma clareza e de um frescor extraordinários. 23 séculos depois, você tenta ler um Tarso Genro ou Marilena Chauí e não entende nada.

Mas escrever bem não basta. O escritor há de ter o que dizer. Há quem escreva muito bem mas nunca produziu o que eu chamaria de bom livro. J. G. de Araújo Jorge, por exemplo. O nome deve ser desconhecido para as gerações atuais. Em meus dias de jovem, era coqueluche. Seus poemas – em função dos quais foi eleito e reeleito deputado federal - são de uma sonoridade extraordinária. Você os espreme e não sai nada.

Livro bom é o livro que nos transforma, que nos faz entender melhor os homens e o mundo, que nos torna mais honestos conosco mesmo e com os demais. Neste sentido, um bom é quase sempre um livro que nos contesta, que ataca a educação que nos foi dada e que muitas vezes nos faz sofrer ao ser lido. Diria que o primeiro bom livro que li foi El Hombre Medíocre, do pensador argentino José Ingenieros. O autor fazia ver em mim o medíocre que eu era, e é claro que isso dói. Ingenieros teve boa fortuna no Brasil, mas hoje ninguém mais fala dele. Ingenieros ficou distante no tempo, não sei dizer o que pensaria dele em uma releitura. Mas foi decisivo em minha formação.

Adelante! O bom livro pode ser irritante. O segundo autor contra o qual lutei foi Nietzsche. Aconteceu nos dias de Porto Alegre. Um colega um tanto inquieto, cujos interesses oscilavam do pugilismo às matemáticas, me abordou com o olhar desvairado. Empunhava um livro com verve. "Tens de ler este alemão. Urgente". Era o Ecce Homo - Como se chega a ser o que se é, de Nietzsche. Seriam umas dez da manhã. Acostumados àqueles humores repentinos, pensei dar uma vista de olhos no livro, para que meu instável amigo não mais me chateasse. Já no índice, comecei a irritar-me. Primeiro capítulo: porque sou tão sábio. Segundo: porque sou tão sagaz. Terceiro: porque escrevo bons livros. O último capítulo, uma pergunta: porque sou uma fatalidade? É o tipo de introdução que convida o leitor desavisado a jogar o livro longe. Mas uma música qualquer, uma cantata de eremita que volta do deserto, emanava das páginas sublinhadas com fúria naquele livro ensebado. Deixei-me levar pela música, fui entrando na atmosfera rarefeita do pensador. "Ouvi-me!" - alerta Nietzsche já na introdução - "eu sou alguém e, sobretudo, não me confundais com qualquer outro".

Mergulhei com fúria na leitura. Sentia estar perto de algo vital. Este livro, no qual o alemão furibundo se apresenta aos pósteros com as palavras com que Pilatos entrega o Cristo às turbas - Eis o Homem - foi escrito pouco antes de seu mergulho na loucura. É certamente o pensador que com mais energia lutou contra a hipocrisia do cristianismo e contra o próprio Cristo, a ponto de assinar-se, em seus dias de insanidade, como o Anti-Cristo. Ao falar da morte dos deuses pagãos, completava: sim, os deuses gregos morreram. Morreram de rir, ao saber que no Ocidente havia um que se pretendia único.

A manhã se foi, entrei meio-dia adentro, esqueci de almoçar e, lá pelas três da tarde, tive de engolir esta: "Não me são desconhecidas as minhas qualidades de escritor; em determinados casos compreendi como se corrompia o gosto com o manuseio de minha obra. Acaba-se, simplesmente, por não suportar mais a leitura de outros livros, pelo menos os filósofos. (...) Disseram-me que é impossível interromper a leitura dos meus livros, porque eu perturbo até o repouso noturno. Não existem livros mais soberbos e, ao mesmo tempo tão refinados quanto os meus".

Vontade de jogar fora o livro. Mas já era tarde demais para voltar atrás.

Bom livro é o que nos traz novas idéias, novos universos. Ou mesmo antigos, mas por nós desconhecidos. O Quixote, sem ir mais longe. Para mim, o fascínio de Cervantes, se por um lado está em seu estilo, sempre elegante e irônico, por outro reside em trazer-me uma Espanha de quatro séculos atrás. O futuro, hoje, nos é bastante familiar: está muito próximo de nós. Já o passado, este se perdeu na poeira dos séculos. Visitá-lo é turismo dos mais pedagógicos.

Livro bom é aquele que desvenda o substrato oculto de determinadas doutrinas. Coloco entre estes dois livros bastante distantes no tempo. O Discurso Verdadeiro, de Celso – ou melhor, o que restou dele – do qual falei há poucos dias. E 1984, a meu ver o mais importante livro do século passado. Em ambos, fala-se não da parte emersa do iceberg, mas do que fica oculto sob a água. Celso não se preocupa muito com as pretensas verdades afirmadas pelo cristianismo, mas dos baixos – e ocultos – instintos que movem os cristãos. (O mesmo faz Nietzsche em sua obra, particularmente em Anti-Cristo).

Orwell, por sua vez, não se preocupa com os gulags ou extermínios do comunismo. Mas com sua verdadeira essência, a manipulação do sentido das palavras. 1984 é, a meu ver, não exatamente um romance. Mas um tratado de linguística. É livro que vai perdurar no tempo, tanto quanto o de Celso.

Já afirmei que, no fundo, todo livro é de auto-ajuda. Nos bons autores vamos procurar respostas a nossas angústias. Mas há uma diferença entre dar como resposta falsas e fáceis esperanças, e mostrar ao ser humano sua grandeza, mas também sua miséria. Zíbia Gasparetto pode trazer ao leitor momentos de grande alegria. Mas Zíbia Gasparetto mente. Nietzsche pode levá-lo à depressão, se você tem espírito frágil. Mas não lhe mente.

Livro bom não é exatamente livro de leitura fácil. Dostoievski é um dos grandes momentos da literatura universal, mas sua leitura é pesada. Livro bom também pode ser aborrecido. Não vou negar o valor das metáforas de Kafka. Mas o tcheco é de leitura entediante. Genial? Pode ser. Mas não precisava ser tão chato.

Bom autor é aquele que vê adiante. Por ver tão longe, geralmente se insurge contra sua época. Este é o mal da nossa. Em busca do grande público, os autores já não ousam contestar as convicções de seus leitores. Preferem bajulá-los. Este deve ser um dos motivos pelos quais os bons livros pertencem ao passado, quando escrever nada tinha a ver com busca de sucesso ou dinheiro.