¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, julho 24, 2013
 
TABELIÃES TAMBÉM JÁ
PODEM RASGAR A CARTA



Em agosto do ano passado, comentei a insólita união conjugal entre três pessoas lavrada em um cartório em Tupã, interior de São Paulo. Segundo Claudia Domingues do Nascimento, tabeliã do cartório e redatora do texto, a escritura estabelecia regras relativas aos bens dos parceiros, na hipótese de algum deles adoecer, morrer ou mesmo desistir da relação. “É como um contrato particular de compra e venda.”

A tabeliã afirmou que o trio tentou, sem sucesso, formalizar a escritura de união estável em outros cartórios. “Aí eles descobriram que minha tese de doutorado é sobre união poliafetiva [entre mais de duas pessoas] e me procuraram”, disse. Se antes era o Legislativo que determinava o regime legal do casamento, ao que tudo indica hoje tese de doutorado produz legislação. Segundo o UOL, o documento lavrado “pode ser a primeira escritura de união conjugal entre três pessoas no país”.

Pelo jeito, os neojornalistas perderam a memória – escrevi na ocasião -. Ou têm preguiça de pesquisar. Há cinco anos, em Porto Velho, Rondônia, uma mulher obteve na Justiça o direito de receber parte dos bens do amante com quem conviveu durante quase 30 anos. Ele era casado e morreu em 2007, aos 71 anos. O juiz Adolfo Naujorks, que concedeu à moça o direito de herança, baseou-se em artigo publicado num site jurídico segundo o qual uma teoria psicológica, denominada "poliamorismo", admitia a coexistência de duas ou mais relações afetivas paralelas em que casais se conhecem e se aceitam em uma relação aberta.

Ou seja, a teoria não surgiu ontem. E sites jurídicos não só estão substituindo o Legislativo, como modificando o regime de transmissão de bens entre herdeiros. Mais ainda, estão legitimando a poligamia. Nada contra. Eu apenas constatava.

Leio hoje no Estadão – quase um ano depois do fato - que a união estável "poliafetiva" lavrada no interior de São Paulo pela tabeliã Claudia do Nascimento Domingues entre um homem e duas mulheres trouxe à tona um debate que divide juristas e a sociedade. Num momento pós-união estável homossexual, já aceita pela Justiça, até onde vai o conceito de família no Brasil? – pergunta-se o repórter.

A imprensa, que por definição deveria ser ágil, no fundo é lenta. Os jornalistas parecem ter levado um ano para perceber que a Constituição havia sido ferida. Para a oficial do cartório de notas de Tupã, no entanto, não há lei na Constituição brasileira que impeça mais de duas pessoas de viverem como uma família e a ausência da proibição abre caminho para um precedente.

Até aqui, está cheia de razão. Sem falar que há milhares, senão milhões, de pessoas vivendo esta condição. A Perpétua e a Outra são personagens recorrentes na família brasileira. Por outro lado, tampouco há na Constituição nada que impeça 15 pessoas viverem como família. No fundo, a tabeliã abre portas para o casamento islãmico no Brasil, que permite quatro (ou mais) fêmeas ao macho muçulmano.

Alvíssaras! Novidade na cultura ocidental. Finalmente o Direito reconhece que o tal de amor não precisa ser monogâmico. Mas minhas dúvidas permanecem. A sentença não estabelece quantas pessoas se pode amar ao mesmo tempo. Só duas? Ou vinte também vale? E o harém do rei Salomão? Pode? Tampouco esclarece se uma mulher pode amar dois ou mais homens. Pelo que se deduz da questão, quando um homem ama duas mulheres é poliamor. Já uma mulher amando dois ou mais homens, vai ver que é puta mesmo.

Já os juristas são relutantes ante o achado da tabeliã. "É um absurdo. Isso não vai para frente, nem que sejam celebradas milhares dessas escrituras. É algo totalmente inaceitável, que vai contra a moral e os costumes brasileiros", avalia a advogada Regina Beatriz Tavares da Silva, presidente da Comissão de Direito da Família do Instituto de Advogados de São Paulo (Iasp) e doutora na mesma área pela USP. "É uma escritura nula, sem valor algum, por não cumprir os requerimentos constitucionais", diz.

Penso um pouco diferente. Mais que escritura nula, é a instituição da bigamia. E bigamia, pelo que lembro de Direito, constitui crime. Não deveria o poliamoroso marido estar na cadeia? Junto com a tabeliã, como cúmplice? José Carlos de Oliveira, professor de direito e doutor pela Unesp, diz que o documento é inválido por "contrariar frontalmente a Constituição" e que o Supremo jamais referendaria o novo tipo de família.

"A escritura em questão alterou de forma unilateral aquilo que já é tipificado pela lei, ou seja, que uma família é constituída por duas pessoas somente, sejam heterossexuais ou homossexuais. Fizeram um contrato de acordo com os interesses deles, que, se chegar ao STF, será prontamente julgado como ilegal".

A tabeliã insiste. Para ela, há chances de que as uniões poliafetivas tenham uma trajetória semelhante às uniões homoafetivas, entre duas pessoas do mesmo sexo, que após muitos anos de recursos e trâmites em diferentes instâncias do país foram consideradas válidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que decidiu por uma "revisão" do texto constitucional no ano passado.

Não é de duvidar. Se o STF rasgou a Constituição baseado em um neologismo – a tal de homoafetividade – ao sacramentar o casamento homossexual, por que uma tabeliã não poderia expandir a união conjugal para três cônjuges? Ou mais, quem sabe, já que, segunda a moça, nada obsta?

"Como é que vão resolver? – pergunta-se a tabeliã -. Não sei. Estamos vendo decisões surpreendentes, e é como um dos juízes do STF colocou muito bem na votação da união homoafetiva no ano passado: 'a realidade não pode ser afastada'".

A proposta é revolucionária. Mas se a realidade não pode ser afastada, ponham-se todas as leis no lixo. A lei existe para delimitar determinados aspectos da realidade, que lesam direitos alheios. Se a lei deve seguir junto à realidade, vamos então legalizar logo o jogo do bicho, a droga, o aborto (que na verdade já não constituem crime), como também os ditos crimes de honra, os assaltos, os arrastões, o latrocínio, enfim, tudo que faz parte dessa realidade, “que não pode ser afastada”.

Não imagine o leitor que sou contra o tal de poliamor. Que, em meus dias de jovem, se chamava amasiamento, adultério, infidelidade. Ou, mais eufemisticamente, donjuanismo, casanovismo. (Poliamor parece soar melhor nestes dias politicamente corretos que correm). Só me parece conveniente antes mudar a lei que transgredi-la com neologismos. Ou cairemos em um caos legislativo do qual será difícil emergir. Aliás, já estamos nele nos atolando.

Já não precisa ser ministro do Supremo para rasgar a Carta. Basta ser tabeliã.