¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, agosto 22, 2013
 
RELATOR DEFENDE ESTUPRO
E INFANTICÍDIO, DESDE QUE
CRIMINOSOS SEJAM ÍNDIOS



Alguém ainda lembra do cacique caiapó Paulinho Paiakan – o homem que podia salvar a humanidade - como foi saudado pela imprensa americana? Em 89, o homem que podia salvar a humanidade – conta-nos a Veja - foi homenageado nos salões luxuosos do Hotel Waldorf-Astoria, em Nova York, ao lado do ex-presidente americano Jimmy Carter. Tinha entre seus admiradores o príncipe Charles e outros membros da famíilia real britânica. O cineasta Ridley Scott, diretor de Alien, o Oitavo Passageiro e Blade Runner, queria fazer um filme sobre sua vida. Era tão popular no exterior que, numa viagem ao Canadá, conseguiu juntar 60.000 dólares em apenas algumas horas. Graças aos bons negócios que fazia com os produtos de sua tribo, era também um índio de muitas posses, dono de carros, avião e terras.

Em junho de 92, Paiakan – que deveria estar representando as comunidades indígenas na Eco 92 – fugia da polícia pelo interior do Pará. Em cumplicidade com sua mulher Irekran, estuprou barbaramente uma menina, professora de suas filhas, a estudante Silvia Letícia da Luz Ferreira, de 18 anos, filha de agricultores de Redenção, cidade ao sul de Belém. A menina tinha feridas espalhadas pelo corpo inteiro, sinais de espancamento no rosto, o bico de um seio dilacerado a dentadas. Estupro é crime hediondo, quando cometido por brancos. Enquanto o processo se arrastava, Paulinho - são simpáticos os diminutivos! - avisou: se fosse condenado, não sairia de sua reserva. Ameaçou inclusive fazer rolar o sangue dos brancos, em caso de condenação.

Foi condenado a seis anos de prisão. Não fez rolar o sangue dos brancos, mas continua até hoje em sua reserva, livre como um passarinho. A Polícia Federal, única autorizada a agir em reservas indígenas, com todo seu poder de fogo, não ousou lá entrar para buscar o criminoso. Paulinho zombou do Estado brasileiro, zombou da Justiça brasileira, zombou de sua vítima. Não houve na época sequer uma feminista que protestasse contra o crime hediondo.

Em 2008, a revista Istoé narrava a história de Amalé, indiozinho de quatro anos, que sobreviveu a um enterramento. Logo que nasceu, foi enterrado vivo pela própria mãe, que seguia um ritual determinado pelo código cultural dos kamaiurás, que manda enterrar vivo aqueles que são gerados por mães solteiras. Para assegurar que o destino de Amalé não fosse mudado, seus avós ainda pisotearam a cova. Duas horas depois, em um gesto que constituiu um desafio a toda aldeia, uma tia apiedou-se do menino e o desenterrou. Estava ainda vivo. Amalé só teria escapado da morte porque naquele dia a terra da cova estava misturada a muitas folhas e gravetos, o que pode ter formado uma pequena bolha de ar.

“Antes de desenterrar o Amalé, eu já tinha ouvido os gritos de três crianças debaixo da terra”, relata Kamiru, a tia que o salvou. “Tentei desenterrar todos eles, mas Amalé foi o único que não gritou e que escapou com vida”. Dois casos, entre muitos dos quais não temos notícias. Há muito venho discutindo a chamada questão indígena e não me é fácil dizer algo de novo. Em agosto de 2011, sob pressão do governo, a Câmara esvaziou um projeto de lei que previa levar ao banco dos réus agentes de saúde e da Funai (Fundação Nacional do Índio) considerados "omissos" em casos de infanticídio em aldeias. A prática de enterrar crianças vivas, ou abandoná-las na floresta, persiste até hoje em cerca de 20 etnias brasileiras. Os bebês são escolhidos para morrer por diversos motivos, desde nascer com deficiência física a ser gêmeo ou filho de mãe solteira.

Em meu livro Ianoblefe (1994), citei as denúncias do antropólogo americano Napoleon Chagnon sobre as práticas ianomâmis, em cujas tribos a criança não desejada é morta após o parto. Ao tornar público este segredo de polichinelo, Chagnon foi excluído do universo da antropologia. Segundo a Istoé, a prática do infanticídio já foi detectada em pelo menos 13 etnias, como os ianomâmis, os tapirapés e os madihas. Só os ianomâmis, em 2004, mataram 98 crianças. Os kamaiurás matam entre 20 e 30 por ano. Mas entre os sacerdotes que vociferam contra o aborto, você não encontra um só que denuncie estes assassinatos. E tudo isto sob os olhares complacentes da Funai, que considera que os brancos não devem interferir nas culturas indígenas.

A polêmica chegou ao Congresso em 2007, quando o deputado Henrique Afonso (PV-AC) apresentou projeto que previa punir servidores que não tomem "medidas cabíveis" para impedir o ritual. Eles responderiam por crime de omissão de socorro, cuja pena varia de multa a prisão por até um ano. O texto ainda classificava o "homicídio de recém-nascidos" como uma "prática nociva". Antropólogos, indigenistas e assessores da Funai pressionaram a Comissão de Direitos Humanos da Câmara, que adiou a votação da proposta por quatro anos.

Há alguns anos, comentei que os indígenas brasileiros se reservam o direito de matar filhos de mães solteiras e recém-nascidos portadores de deficiências físicas ou mentais. Gêmeos também podem ser sacrificados. Algumas etnias acreditam que um representa o bem e o outro o mal. Por não saber quem é quem, eliminam os dois.

Outras crêem que só os bichos podem ter mais de um filho de uma só vez. Há motivos mais fúteis, como casos de índios que mataram os que nasceram com simples manchas na pele – essas crianças, segundo eles, podem trazer maldição à tribo. Os rituais de execução consistem em enterrar vivos, afogar ou enforcar os bebês. Geralmente é a própria mãe quem deve executar a criança, embora haja casos em que pode ser auxiliada pelo pajé.

Ou seja, tanto estupro como infanticídio há muito são permitidos no Brasil, desde que seus autores sejam indígenas. Mas a lei – embora tolerasse tais crimes – não previa a exceção.

Leio no Estadão de hoje que o relator do projeto de mudança no Código Penal, senador Pedro Taques (PDT-MT), apresentou o parecer preliminar, retirando do texto propostas polêmicas como a legalização do aborto e da eutanásia. Mas incluiu a tipificação da corrupção como crime hediondo e regras mais rígidas para a progressão de penas nas propostas de mudança.

"Nossa intenção é fazer um Direito Penal mais justo, mas tendo claro que o Direito Penal não é um remédio para resolver os problemas do Brasil, mas apenas um mecanismo a mais para vivermos em uma sociedade mais justa", disse Taques. Entre as alterações no texto original, o relator propõe que índios teriam redução de pena em até dois terços ou simplesmente seriam anistiados quando praticarem crimes de acordo com suas crenças, costumes e tradições.

Se faltava legalizar estupro e infanticídio no Brasil, o relator está aplainando o caminho. Se aceita sua proposta, caciques não precisarão fugir para a selva por ter estuprado brancas nem índios serão acusados de matar os próprios filhos. Desde que ajam de acordo com suas crenças, costumes e tradições.