¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, setembro 21, 2013
 
Crônicas da Guerra Fria:
ODE AO OCIDENTE *



Atirando-se no reservatório de água de uma aldeia das montanhas do sul da China, seis jovens camponesas se suicidaram pelo fato de não poderem descer ao vale, porta de um mundo exterior, maravilhoso e inacessível. É o que nos informa o jornal A Tarde, de Cantão. O fato, que não mereceu destaque algum na imprensa ocidental, nos faz pensar.

Em Paris, partilhei meus dias com amigas fugitivas do Leste europeu. Não que fossem ativistas políticas, nada disso. Fugiam, isto sim, de uma vida cinzenta que mais se assemelhava a uma morte em vida. Sair de tal inferno para cair no paraíso consumista parisiense não deixa de ser traumático. Era com um misto de humor e lástima que eu as via trocar desengonçadas calcinhas de pano vagabundo e sem cor, por excitante lingerie em seda vermelha ou preta. Mais divertido era observá-las perplexas, em um supermercado, sem entender como um povo podia permitir-se o luxo de escolher papel higiênico em função da cor. Mais perturbador ainda — ó, utopia! — era saber que poderiam escolhê-lo pelo perfume.

Habituadas às ásperas páginas da Pravda — dura é a verdade e tem grande tiragem — as bravas camaradas tinham, no entanto, uma espantosa capacidade de adaptação. Com poucos meses de Ocidente, as sofridas eslavas despiam-se do casulo socialista e se transformavam em libélulas de fazer inveja a muita parisiense. Não era esta traumática metamorfose o que nelas mais me comovia. E sim seus transportes, infantis e quase histéricos, frente a uma agência de turismo. As duas primeiras vítimas, diz o jornal de Cantão, amarraram-se juntas pelas mãos, antes de atirar-se nas águas em Huilan.

Falava das eslavas. Mas antes melhor explicar o que é uma agência de viagens na Europa. Cá no Brasil, se você não tem informações anteriores sobre o país para onde quer ir, terá de ser vidente para saber o que vai encontrar. Os agentes de viagem são mais avaros com papel impresso do que os regimes comunistas com papel higiênico. Em Paris, as coisas são um pouco diferentes. Você entra em qualquer agência e apanha quilos de prospectos, luxuosamente impressos, que lhe oferecem o planetinha todo, do Saara à Lapônia, de Machu Picchu ao Katmandu, no inverno ou no verão, a preços baixos ou altos, de avião ou de trem, em lombo de dromedários ou em trenós puxados por cães. Por esse cardápio de povos e paisagens você paga... absolutamente nada. É chegar e pegar. Se quiser, depois voltar e partir.

Mas por que não ficaste por lá? — é o que me perguntam quando me ponho a xingar o Brasil. Não fiquei por uma simples razão: daqui sempre posso sair e um dia chegar lá. O mesmo não ocorria com minhas Olgas e Úrsulas. Voltassem a seus países, de lá jamais poderiam voltar a sair. O que nelas mais me comovia, não era o fascínio ante lingeries sofisticadas ou ante as diversas opções de papel higiênico, isso sem falar na oferta alucinante do mercado parisiense. O que me dava vontade de chorar era vê-las abraçadas a quilos de sonhos. Ou seja, de prospectos de viagem, que ofereciam o planeta todo a preços módicos.

Ou nem tanto. Para a Índia, pode-se tanto voar em primeira classe rumo a hotéis cinco estrelas como tomar um ônibus Paris/Benares, coisa de uns trinta dias, isto conforme a evolução das guerras ou guerrilhas pelos países por onde se passa. Carnaval no Rio, mariachis no México, lamas no Tibete, gurus na Índia, glaciares na Patagônia, fjordes na Noruega, dunas e oásis no Saara, todas estas promessas de viagens elas portavam sob os braços. Para meu espanto. As coitadas mal conseguiam pagar suas cervejinhas no Quartier Latin e desejavam o mundo.

Para que tantos prospectos? — quis saber — afinal vocês mal têm centavos para o metrô. “Ah — me responderam — aqui pelo menos se pode sonhar. Lá, até sonhar é proibido”. Das outras quatro chinesas desaparecidas quinze dias depois em Huilan, só foram encontrados seus sapatos junto ao reservatório de água.

Donde concluímos: xerox é como liberdade, só percebemos sua importância quando a perdemos. Por que xerox? Porque sempre o utilizei sem sequer imaginar o que significava em termos de liberdade. Pois na União Soviética, mesmo nestes dias de Gorbachov, possuir uma máquina de xerox é crime de lesa-socialismo. E o pesquisador que quiser uma cópia de um documento qualquer, terá antes disso de rastejar para obter pelo menos umas dez assinaturas da Nomenklatura, antes de obter sua cópia, única e irreproduzível.

Ou viajar. Imaginou o leitor ter de pedir permissão ao Estado para ir de Florianópolis a Porto Alegre? Ou de Porto Alegre a Dom Pedrito? Parece-nos absurda tal hipótese e espero que assim pareça, pelos séculos dos séculos, amém. Para minhas amigas russas, era rotina. Se quisessem afastar-se cinqüenta quilômetros de Moscou, teriam de explicar muito detalhadamente as razões pelas quais queriam varar os cinqüenta quilômetros. O jornal de Cantão informou que as razões dos suicídios das seis chinesas são simples: as moças, analfabetas, tinham visto alguns filmes e escutaram os relatos deslumbrados de alguns aldeões que visitaram a cidade.

Ocidentais, degustamos quase com tédio nossos privilégios cotidianos, direitos que são negados a pelo menos dois terços dos habitantes do planeta. Quando velho, eu adorava falar na “sifilização ocidental e cristã”. Com o passar dos anos, rejuvenesci. Hoje, apesar do cristianismo, aceito o Ocidente e seus valores e contradições. Pois aqui ainda se pode respirar. Convencidas de que estavam condenadas a vegetar em suas montanhas, as seis moças de Huilan preferiram a morte.

Jamais ocorreu talvez ao leitor avaliar o tremendo privilégio que desfruta ao passar um dia na praia, nestes estertores do século XX. Para começar, pode ir à praia que quiser, sem dar satisfação à autoridade alguma, o que já não ocorre no universo chinês ou soviético. Você pode beber o que quiser, inclusive uísque ou cerveja. E cerveja gelada, bem entendido. Em países muçulmanos ou comunistas, não encontraria álcool nem pra remédio. Nos primeiros, porque Alá não gosta. Nos segundos, porque a livre iniciativa é pecado.

Mas deixemos de lado estas sociedades ainda mergulhadas nas trevas da Idade Média. Na esplendorosa e cosmopolita Estocolmo, recentemente indicada como a melhor cidade do mundo para se viver, uma cervejinha na praia dá cadeia. Pois beber ao ar livre — beber álcool, bem entendido — é crime. Mais ainda: é proibido beber em bares. Mas para que então bares? Ora, nos bares pode-se tomar chá, chocolate, sucos de laranja, pepsi e xaropes do gênero. Mas onde se pode beber no paraíso nórdico? — já estará se perguntando o sedento leitor. Nos restaurantes, desde que se peça almoço ou janta. Mas atenção: só a partir das doze horas em ponto até as 24. Nem um minuto a mais ou a menos. E a preços de tornar sóbrio qualquer cristão ou Cristaldo.

Sem falar nas mulheres que nos presenteiam, com uma generosidade quase lúbrica, com o festival de suas curvas. Exato; nossas praias têm mulheres. O cronista hoje ensandeceu, dirá o leitor. O pior é que não. Apenas acometeu-me uma crise de lucidez. Bem mais da metade do planeta está proibida de contemplar a nudez do sexo oposto. Já nem falo do mundo islâmico, que de mulher Alá também não gosta. Desloquemo-nos para um país laico e materialista. Bulgária, por exemplo. Em Varna, principal porto do Mar Negro, ainda hoje, neste ano da graça de 1989, há praias para homens e praias para mulheres. Cerveja, não sei se tem. Quando soube que em minha praia não podia contemplar estes seres sem os quais as praias não têm sentido, dei meia volta e amaldiçoei Varna, Bulgária e Marx e prometi a mim mesmo jamais voltar lá.

Nossas mulheres têm clitóris. Exato: nossas mulheres têm clitóris. Grande coisa, dirá o leitor. Grande mesmo, insisto. Pois ainda hoje, neste finzinho de século XX, 50 milhões de mulheres foram submetidas, na infância, à ablação do clitóris e à infibulação da vagina. Pois de clitóris Alá também não gosta. Outro dia, uma amiga que voltava da Nicarágua, cansada de colher café e aspirando emoções mais fortes, confidenciou-me o desejo de conhecer a Líbia de Kadhafi. Vais voltar sem a grande coisa, adverti. Consegui empanar, no olhar da fanática, o carisma do líder líbio: “Não vão levar. Morro dando e não entrego”. Prevalecera o bom senso ocidental.

Vivemos dias duros, é verdade. Faz bem olhar, de vez em quando, o universo circundante. Enquanto tivermos praias, cervejas e clitóris, o Ocidente está salvo. Tim-tim, leitora!

* Porto Alegre, jornal RS. 15/10/1989. Hoje já se pode beber nos bares na Suécia.