¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, setembro 13, 2013
 
DIRETOR ASSASSINA MOZART


Cheguei muito tarde à ópera. Culpa das encenações medíocres da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre. As intenções eram sublimes, mas o resultado, desastroso. Havia um maestro que mais parecia uma barata gorda de smoking, o húngaro Pablo Komlós. E uma soprano que era um breve contra óperas, Eni Camargo. Gordíssima, era um verdadeiro paradoxo ambulante ao interpretar uma tísica Violetta. Carmen, então, era um desastre. A cigana linda e sensual era uma pipa sem cintura. Quando caía sob as punhaladas de Don José, era um estrondo no palco. Eu achava o gênero ridículo e não entendia aquele público enorme das óperas encenadas na Reitoria.

Fui me entender com as óperas em Paris. Certa vez, vi na televisão, uma Carmen belíssima e extremamente sensual, e aí a história tomava sentido. Para interpretar se exige um physique du rôle, ou a ópera perde o sentido. Vou mais longe: as Carmens têm de ser latinas. Mais ainda: com cara de puta. Ou não é Carmen. Neste sentido, a Carmen feita pela Julia Migenes é a mais fascinante que já vi em minha vida.

Os gêneros inovam e se transformam. Ser contra inovações não condiz com a arte, que sempre se renova. Mas há inovações abomináveis. Foi o José Celso Martinez, se não me falha a memória, que, para adaptar Bizet à idiossincrasia tupiniquim, pôs no papel de Escamillo um jogador de futebol. Temos então:

En garde! allons! allons! Ah!
Goleador, en garde! Goleador, Goleador!
Et songe bien, oui, songe en combattant
Qu'un oeil noir te regarde,
Et que l'amour t'attend,
Goleador, l'amour t'attend!

Decididamente, é uma ofensa às musas. Que crie sua ópera futebolística e deixe Bizet em paz. O Theatro Municipal de São Paulo está apresentando Don Giovanni, de Mozart, com uma dessas inovações bizarras. Na adaptação de Francesco Pier Maestrini, o conquistador de Sevilha inspira-se no conde Drácula.

Para o regente, o maestro israelense Yoram David, "um aspecto importante é que os dois escolheram viver fora das regras da sociedade. Eles escolheram ter uma certa liberdade, que obviamente é punida, porque a sociedade não permite que as pessoas vivam fora dos regulamentos".

Maestrini cita um estudo de Alessandro Baricco que se chama Drácula, Sósia de Don Giovanni, sobre as analogias dos dois personagens, que são dois mitos eternos. "Eles não têm um senso de culpa, uma ética nessa leitura. Pelo que eu sei, isso nunca foi pensado. Don Giovanni é pensado de todas as maneiras possíveis, cada ano são feitas muitas montagens pelo mundo. E elas são sempre atualizações para o moderno. É muito raro ver Don Giovanni montado no século XVII hoje em dia", completa.

Pode ser. Mas não vejo como associar um personagem sedento de prazer com um vampiro que se alimenta de morte. Talvez Maestrini tenha pretendido surfar na onda ridícula de vampirismo que invadiu o cinema. Se assim foi, conspurcou Mozart. Don Giovanni cultua a vida. Drácula celebra a morte.

Adaptações despropositadas de óperas, as vemos todos os dias. Certamente ninguém mais lembra, mas em 2007, o Islã acabou proibindo uma ópera na Alemanha. A direção da Ópera de Berlim cancelou quatro apresentações de Idomeneo, de Mozart, previstas para setembro daquele ano, por medo aos muçulmanos. Esta ópera foi montada em Berlim, em 29 de janeiro de 1781. Diga-se de passagem, foi apresentada em 2006, no Rio de Janeiro, por ocasião da comemoração dos 250 anos do nascimento de Mozart.

Não que Mozart tenha ferido os brios dos sarracenos. Ocorre que na versão do diretor Hans Neuenfels, o rei Idomeneo tira de um saco e põe sobre quatro cadeiras as cabeças decepadas de Netuno, Buda, Cristo e Maomé. Segundo o diretor, a cena reflete "a tentativa do protagonista de se libertar da ditadura dos deuses". Ora, se em Don Giovanni o adulto Mozart jogou seu herói aos infernos para não chocar a conservadora Viena, não seria o jovem Mozart quem decapitaria quatro deuses.

Em verdade, foi uma provocação do diretor. Por um lado, Buda, Cristo e Maomé não são personagens da ópera. Por outro, Netuno nela não é decapitado. Seja como for, os encenadores de óperas sempre se sentiram tentados a recriá-las. A molecagem do diretor só serviu para contar pontos para os muçulmanos. E Berlim se dobrou à arrogância árabe. Mais um pouco, e a Europa terá de examinar se o Rapto no Serralho não fere a delicada sensibilidade muçulmana. Quem sabe A Italiana na Argélia, de Rossini, não contém alguma conotação politicamente incorreta.

Adaptações muito realistas também têm seus riscos. Uma amiga musicista contou-me que, numa encenação de Aída, o diretor houve por bem colocar um elefante no palco, na hora em que Radamés, vencedor da batalha contra os etíopes, entrega os louros da vitória a faraó. Ocorre que o elefante era de circo e fora treinado para erguer-se nas patas na hora dos aplausos. Não aconteceu outra. Mal a plaéeia começou a bater palmas, o animal, muito educado, fez o gesto de agradecimento e o tenor foi ao chão.

Mas há molecagens divinas. Uma delas foi obra de Tereza Berganza, em Don Giovanni. Quando Zerlina canta:

Giovinette che fate all'amore,
non lasciate che passi l'età;
se nel seno vi bulica il cor,
il rimedio vedetelo qua.
Ah! Che piacer, che piacer che sarà!

Il rimedio, no caso, é Masetto, seu noivo, que desce as escadas e Zerlina indica com as mãos. La Berganza resolveu inovar. Na hora do vedetelo qua, levou as mãos ao regaço. A platéia veio abaixo.

Uma coisa é uma piada refinada. Don Giovanni deve ter gargalhado lá nas profundezas do inferno, para onde o enviou o Comendador. Outra coisa é ceder aos apelos de um modismo idiota.