¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, setembro 12, 2013
 
GULLIVER E O STF


Em 2011, o STF rasgou a Constituição com um jogo de palavras. Para o ministro Carlos Ayres Britto, homossexuais deixaram de existir. Agora são todos homoafetivos. Segundo o ministro, o vocábulo foi cunhado pela vez primeira na obra União Homossexual, o Preconceito e a Justiça, de autoria da desembargadora aposentada e jurista Maria Berenice Dias, consoante a seguinte passagem: “Há palavras que carregam o estigma do preconceito. Assim, o afeto a pessoa do mesmo sexo chamava-se 'homossexualismo'. Reconhecida a inconveniência do sufixo 'ismo', que está ligado a doença, passou-se a falar em 'homossexualidade', que sinaliza um determinado jeito de ser. Tal mudança, no entanto, não foi suficiente para pôr fim ao repúdio social ao amor entre iguais”.

Acontece que o neologismo está errado. O homo, de homossexual, é palavra grega que quer dizer mesmo. Homossexual, mesmo sexo. A palavra homoafetivo, se formos fiéis ao étimo, quer dizer mesmo afeto. Ora, mesmo afeto não quer dizer nada específico. Quer dizer apenas que você tem o mesmo afeto que outra pessoa tem por você. Mas homoafetivo, segundo a desembargadora desocupada, seria um eufemismo para homossexual. Não é. É palavra que foi construída errada.

O voto inaugural do ministro Ayres Britto está eivado de uma poesia extraordinária: “Em suma, estamos a lidar com um tipo de dissenso judicial que reflete o fato histórico de que nada incomoda mais as pessoas do que a preferência sexual alheia, quando tal preferência já não corresponde ao padrão social da heterossexualidade. É a perene postura de reação conservadora aos que, nos insondáveis domínios do afeto, soltam por inteiro as amarras desse navio chamado coração”.

De minha época, não era bem esse navio chamado coração que levava ao homossexualismo. Mas sim outras naves menos nobres. É a mais recente jabuticaba nacional. A Constituição se rasga com estro poético pelo ministro.

Se os senhores ministros acham que os brasileiros são panacas que se deixam levar por neologismos e figuras poéticas, estão cheios de razão. Pois não vi ninguém – nem jornalistas, nem escritores, nem juristas – protestar contra este uso safado da língua. Protestos contra a decisão do STF houve. Mas nada contra a manipulação da linguagem.

Ciente de que falar difícil convence os ignaros, o ministro Teori Zavascki se esmerou nos arrazoados herméticos e despropositados, para livrar do cárcere os figurões já condenados pelo mensalão. Sua argumentação é de uma cristalinidade ímpar:

“Se mantivermos o ponto de vista de que, através de uma simples interpretação, um animal bípede não pode ser convertido num quadrúpede, achamos a perante alternativa: ou o argumento da analogia ou o argumento contrário. No puro plano lógico formal, esses dois argumentos, que conduzem a resultados completamente diferentes, tem a mesma legitimidade. Tanto se pode dizer que aquilo que vale para os quadrúpedes deve valer também, em virtude da semelhança, para os bípedes igualmente perigosos, como se pode concluir que aquilo que é prescrito em relação a quadrúpedes não pode valer para outros animais. Ou vale para tudo (o entendimento de que a lei revogou o regimento) ou não vale para nada. Invocá-lo para afastar os embargos infringentes levaria por idêntica razão afastar os demais recursos. Não seriam cabíveis os embargos de declaração”, disse.

Se o que vale para quadrúpedes não vale para bípedes, obviamente Zé Dirceu não pode ir para a cadeia. C. Q. D.

Sempre volto a Swift, para entender o mundo do direito. Ao viajar pelo País dos Cavalos, os Houyhnhnms, Gulliver explicava ao soberano daquele reinado o funcionamento da lei em sua pátria, a Inglaterra. Afirmou existir entre nós uma sociedade de homens educados desde a juventude na arte de provar, por meio de palavras multiplicadas para esse fim, que o branco é preto e que o preto é branco, segundo eram pagos para dizer uma coisa ou outra.

- Todo o resto do povo é escravo dessa sociedade – continua Gulliver -. Por exemplo, se o meu vizinho tenciona ficar com a mina vaca, contrata um advogado para provar que deve tirar-se a vaca. Nesse caso, tenho de contratar outro advogado para defender os meus direitos, pois é contrário a todas as normas da lei permitir-se a um homem falar em seu próprio nome. Pois bem, nessas condições, eu, que sou o verdadeiro dono, me vejo a braços com duas grandes desvantagens: primeiro, o meu advogado, habituado quase desde o berço a defender a falsidade, está completamente fora de seu elemento quando precisa advogar a justiça, ofício desnatural, em que sempre se empenha com grande inépcia, senão com má vontade. A segunda desvantagem reside em que o meu advogado tem de proceder com muita cautela, para que não o censurem e aborreçam os colegas, como a alguém que degradasse o exercício da profissão.

- Donde nasce que tenho apenas dois métodos para conservar a minha vaca. O primeiro consiste em peitar o advogado de meu adversário, pagando-lhe honorários dobrados, e levando-o a trair o seu cliente, com uma insinuação de que a justiça pende para o seu lado. O segundo, em fazer o meu advogado crer que a minha causa pareça a mais injusta possível, admitindo que a vaca pertence a meu adversário e isto, se for feito com perícia, atrairá por certo o favor dos juízes.

- No julgamento das pessoas acusadas de crimes contra o Estado, é muito mais curto e louvável o processo; sonda o juiz, primeiro, a disposição dos que se encontram no poder; depois, não lhe é difícil enforcar ou salvar o criminoso, preservando rigorosamente as devidas formas da lei.

Isto está nas Viagens de Gulliver, escrito em 1725. De lá para cá, ninguém definiu melhor o mundo do Direito.