¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, setembro 05, 2013
 
TUTTO È FOLIA NEL MONDO


Aconteceu há tempos. Um amigo que voltava da Itália, ciente de minhas predileções por Mozart, trouxe-me um Marzemino. Para quem não sabe, é o vinho que Leporello abre para Don Giovanni, no banquete oferecido à estátua do Comendador. Eccellente marzimino, louva o burlador de Sevilha. Ora, justo nesses dias, eu havia tropeçado com um desses médicos que acreditamem Deus e têm preocupações mais éticas do que científicas.

Já devo ter falado do homenzinho. Que vai fazer um homem em um bar? — queria saber. Sua pergunta era como de vestibular, só admitia uma opção correta. Queria ouvir uma só resposta: beber. Ocorre que estou já longe da idade dos testes de múltipla escolha. “Em um bar, Doutor, vai-se para fazer muitas coisas. Até mesmo beber”.

Resumindo a ópera: justo naqueles dias em que recebo o honroso mimo de um Marzimino, ele me prescreve um regime de álcool zero. Eu fora em busca de ciência, o homem me oferecia ética. Dispensado dizer que troquei de médico. Não iria renunciar ao elegante regalo em função das prescrições de um moralista.

A palavra zero teve seu prestígio aumentado nos últimos anos. Terá começado com aquele prefeito de Nova York que preconizava tolerância zero. Depois do 11 setembro tivemos o Ground Zero. Slogan puxa slogan. Como os marqueteiros tupiniquins adoram imitar a marquetagem ianque, vivemos hoje, pelo menos no Brasil, em ritmo de fome zero. Nestas ocasiões viro místico e imploro ao céus: não permitais, ó Senhor, que vossos servos no Congresso tenham ciência dessa idéia nefasta de álcool zero. Dada a onda de moralismo que infesta a Europa, onde até a prostituição começa a ser proibida, tampouco me surpreenderia que de alguma seita saltasse algum Savonarola a bradar: mulher zero.

Verdade que, tão certo como a morte é certa, mais dia menos dia nos chegará aquele entre os dias em que o desejo de mulher será zero e o álcool tenderá à mesma cifra. Mas até lá muito vinho e muitos abraços hão de rolar sob as pontes. Em minhas rêveries, imagino um hipotético médico tentando me consolar.

— Vinho, nem pensar. Mas você não gostava de ópera? Viaje. A Itália é rica em óperas e a medicina não tem objeção alguma à música lírica.

Não deixa de ser uma bela idéia para nossos vieux jours. Mas... Para começar, lá está Don Giovanni nos convidando para o bem bom:

Vivan le femmine,
Viva il buon vino!
Sostegno e gloria
d’umanità!

Perdoe o leitor se não traduzo. Mas óperas — particularmente as italianas — perdem a graça se traduzidas. Que mais não seja, denota injustificável preguiça intelectual para um brasileiro não conhecer o italiano, esta língua tão musical e que nos é tão próxima. Não bastasse o gosto pelo vinho, Leporello canta as conquistas do patrão, na famosa listina. Uma perplexa Dona Elvira se escabela ao ouvir o catálogo “delle belle che amò il padron mio”:

In Italia seicento e quaranta,
In Allemagna duecento trentuna;
Cento in Francia, in Turchia novantuna,
Ma in Ispagna, ma in Ispagna,
son gia mille e tre!

Mille e tre! Seria solene ironia recomendar óperas a um velho bon vivant. Verdade que Don Giovanni leva um subtítulo, l’empio punito, o ímpio punido. Para satisfazer uma Viena católica (de novo, o horror ao prazer), Mozart joga seu personagem aos infernos. Mas o que nos fascina desde então e até hoje, não é o libertino punido, mas o libertino em plena glória. A frase final da ópera é de um moralismo emético. Não importa. Até lá, a sedução exerceu seus efeitos.

Ou a Traviatta. Lá está o povo incitando ao vinho e ao amor. Violetta, apesar de tísica, não se entrega ao infortúnio. Desconheço hino mais intenso à vida que esta ária de Verdi:

Tutto è follia nel mondo
Ciò che non è piacer.
Godiam, fugace e rapido
È il gaudio dell’amore;
È un fior che nasce e muore,
Nè più si può goder.

Há razões que a medicina desconhece. Seria um médico tão cruel a ponto de negar um prazeroso cálice a uma pobre tuberculosa sedenta de vida? Verdi leva a medicina a um impasse. Ou se permite o vinho. Ou se proíbe a ópera. Ouçamos Alfredo.

Libiam ne´ lieti calici
Che la bellezza infiora,
E la fuggevol ora
S’inebri a volutta’.
Libiam ne´ dolci fremiti
Che suscita l’amore,
Poiché quell’occhio al core
Onnipotente va.
Libiamo, amor fra i calici
Più caldi baci avra’.

Todos erguem seus copos á enfermiça Violetta:

Godiam la tazza e il cântico
La notte abbella e il riso;
In questo paradiso
Ne scopra il nuovo dí.

E por aí vai. Em L’Italiana en Algeri, lá está Rossini louvando ... as mulheres. No caso, as italianas.

Le femmine d’Italia
Son disinvolte e scaltre.
E sanno più dell’altre
L’arte di farsi amar.

Sem falar no Rigolleto:

La donna è mobile
qual piuma al vento,
muta d’accento e di pensiero.

Fico na Itália, já nem falo em Carmen, que tornava mais ágil até mesmo o sizudo Nietzsche. Nestes anos em que uma onda aziaga de moralismo e abstinência ameaça o melhor da vida, nada melhor que voltar às boas fontes. Falar de ópera pode parecer obsoleto nestes dias de rock, rap, funk e cacofonias outras. Mas os antigos entendiam do bem bom.

A vida continua inexorável rumo à morte. E o Tevere rumo ao Tirreno. A Moira Torta não escolhe hora para bater na porta. Como Violetta, libiamo. Salute!