¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, setembro 10, 2013
 
UM SONHO DE CRÔNICA

Ney Messias



Não! Há dias em que não é possível, em que a crônica se encolhe como um molusco dentro de sua concha encaracolada. Não é que a crônica deixe de existir: ela está ali e além, pendente como um fruto do seu galho, pronto para ser colhido e devorado. Mas o tédio do palhaço que se disfarça sob a capa do cronista, dissolve em seu ácido tudo aquilo que podia ser transformado em comentário. Não é o assunto que falta ou foge: o cronista que se olha com desconfiança, que duvida do momento propício, que deixa passar, sem qualquer visão, o fato comentável.

Há uma explosão demográfica de estrelas do mar ameaçando as ilhas do Sul do Pacífico, e legiões de Ancasthor Planti, esses eqüinodermes em forma de estrela, destroem por dia vários quilômetros de bancos de coral. Pois que tomem conta dos mares. Querendo imitar os golpes de Verdugo e Pantera Negra, que aparecem na televisão em lutas de «catch», dois amiguinhos do menino Antônio Lombardo acabaram por estrangulá-lo. E daí? Não, não há crônica na morte de Antônio Lombardo ou em qualquer outra morte. As palavras todas estão despojadas de sentido, as definições carecem de significado, os verbos perderam a semântica.

Era mister que hoje me surgisse do coração alguma coisa completamente nova, cheia de força, transbordante de expressão, despejante de uma espécie de amor que ainda não apareceu em qualquer lugar. Gostaria de escrever uma frase só, pequena, reduzida, mínima, que tivesse a força de uma idéia cósmica e o poder criador de algum Deus perdido, de uma divindade esquecida no baú das memórias longínquas: para torcer o meu e os destinos dos demais. Imagino uma mãe de família lendo para o filho essa crônica: vejo o menino tornar-se velho e sério de repente, com os cabelos brancos e a voz rouca a dizer sentenças sábias. Depois a criança envelhecida de repente leria o que escrevi ao velho entediado, e surpreendentemente suas feições mortas ganhariam de novo a louçania do menino até que de sua boca começassem a surgir, com a baba dos infantes, os regougos dos primeiros ensaios de palavras, misturados ao riso esquizofrênico dos meninos de colo.

Por um truque qualquer minha crônica estaria escrita no céu, com letras de nuvens, e todos os que a lessem sentiriam a vontade do contrário: se estivessem tristes, repentinamente explodiriam na transfiguração de uma alegria jamais sentida; se estivessem alegres, tombariam na depressiva tristeza nunca antes imaginada pelo ser humano; se fossem maus, inopinadamente seriam tomados pela bondade que tem perdão para todos os gestos; e se fossem bons, começariam a despenhar-se pelas ladeiras do mal, como doidos incuráveis; se fossem autoritários, sentiriam no coração a invencível vontade de permitir todos os abusos, e se fossem tolerantes, começariam impulsivamente a escravizar quem quer que cruzasse por seus caminhos; se estivessem nus, buscariam sem demora a opacidade dos tecidos para cobrir com ela a indigência dos seus corpos; e se vestidos, rasgariam suas vestes como histéricos, e exporiam os ângulos e as curvas anatômicas ao mundo inteiro, como se tivessem reencontrado a hora perdida na aurora do homem.

À simples leitura da minha primeira frase, toda a luz apagaria como pedindo perdão da sua luminosidade, e a escuridão incendiaria como as velas de mil sóis, em um ato de contrição pelo pecado de ter escolhido a treva. Nada ficaria como estava antes. E finalmente, para encerrar a glória de ter escrito uma coisa assim, viriam buscar-me em minha casa. Eu sairia à janela aos primeiros gritos, com um enorme sorriso na face antes carrancuda. Veria os tristes rindo desbragadamente, e os alegres em choro convulso. De repente, do meio da multidão, um grupo de bandidos, que acabava de tomar a primeira comunhão, tentaria impedir que quarenta freiras franciscanas, armadas de rifles, apontassem para mim.

Mas já seria tarde: as armas seriam disparadas e eu cairia, coberto de sangue, para todo o sempre, sobre as lajes do passeio. Estaria, então, feita e completa, a crônica de meus sonhos.

* As crônicas de Ney Messias, poeta gaúcho travestido em advogado, estão reunidas no livro O Construtor de Mistérios, em 1975, compiladas e editadas por este que vos escreve.