¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, outubro 24, 2013
 
ACONTECEU EM TÚNIS *


Túnis, anos 70. Eu fazia a cobertura do festival de cinema de Cartago. Entre um filme e outro, jantei com um carioca, funcionário da Embrafilme, e uma cineasta portuguesa. O carioca estava preocupado apenas em passar bem. A lusa tinha preocupações outras. Queria achar uma praia, em pleno país árabe, onde pudesse tomar sol de marianinhas ao léu. Traduzindo: fazer topless. Ao final da janta, pedimos um café turco.

O carioca, por brincadeira, resolveu ler a borra do café da lusa. A rapariga emborcou sua xícara e nosso vidente improvisado começou a interpretar os desenhos da borra. Foi avançando, sem mais compromissos, aquelas previsões óbvias: você tem um belo futuro pela frente, perspectivas de novas viagens, doenças em família. Em suma, tudo aquilo que qualquer pessoa minimamente bem situada terá, queira ou não queira. Até aí, brincávamos.

O garçom nos observava e não resistiu: “Monsieur lê borra de café?”. O carioca assumiu: “leio”. O garçom pediu então que lesse seu futuro. Tudo bem, respondeu o súbito vidente, mas você terá de tomar um café turco. E o garçom, que confessou detestar café turco, esvaziou uma xícara e a emborcou. O carioca assumiu ares de guru e começou a leitura. Começou pelo óbvio, aquelas coisas rotineiras que a qualquer um de nós acontecem. Lá pelas tantas, anunciou: você tem um encontro muito importante à sua frente. O garçom puxava pela memória, não encontrava encontro algum. Nesta altura, o proprietário do restaurante já entrara na roda e interveio: “tem sim , claro que tem, você tem aquele audiência com o ministros dos Cereais, sobre sua padaria”. O guru carioca tripudiou: “a borra não mente. Olhe o ministro firme, nos olhos, quando encontrá-lo”.

E continuou: você tem alguém com graves problemas de saúde na família. O garçom puxou pela memória, não encontrava ninguém doente em suas cercanias. Monsieur desculpasse, mas não havia ninguém com problemas de saúde. Nosso vidente continuou sua farsa e antes que terminasse, o patron entrou de novo na conversa: tem alguém doente sim, seu irmão não funciona bem da cabeça. O leitor de borras do fundo de xícaras exultou: “claro, está tudo aqui na borra”. E recomendou a terapia: quatro vezes por mês, atar o irmão num poste e dar um banho de sal grosso.

Passaram-se as décadas e até ainda hoje imagino aquele pobre diabo sendo atado a um poste todas as semanas, sem saber porquê e submetido a uma ablução salgada. Tudo por uma piada de mesa de bar, elaborada por ocidentais desocupados. Neste mar de crédulos em que navegamos, clientela é o que não falta para aderir ao primeiro vigarista que se arvore em leitor do futuro ou apóstolo de uma nova crença. Você faz uma piada e arrisca criar um rebanho de seguidores.

Nunca foi tão fácil criar uma religião. Sem ir mais longe, temos aí o bispo Edir Macedo, um dos mais recentes aliados do impoluto Partido dos Trabalhadores. Começou sua cruzada em 1977, empunhando sua versão particular da Bíblia. Nem transcorreram três décadas e tem milhões de fiéis no planetinha e templos de Paris a Nova York. O cristianismo precisou de quatro séculos para impor-se a um continente. Em trinta anos, o bispo Macedo já se espalhou por três.

Comentei a regulamentação da profissão de astrólogo na semana passada. Recebi não poucos e-mails indignados com minha descrença em relação à influência dos astros e aos bons ofícios de seus intérpretes. Se descrer de Deus já não causa espécie neste século XXI, descrer da astrologia parece constituir heresia. Recebi protestos de pessoas que se dizem historiadores e astrólogos, cientistas políticos e astrólogos. Numa época em que jornais supostamente sérios mantém colunas diárias do ancestral engodo, não é de espantar-se que astrologia comece a assumir um status acadêmico.

Me apraz auscultar, nos bares que freqüento, a diversidade humana. O que tenho visto ultimamente é de assustar. Que me encontre com crentes deste ou daquele deus, gente que crê nos deuses astronautas ou na neurolingüística, na psicanálise ou em feng shui, isto faz parte da vida de bar. Para minha perplexidade, tenho encontrado ultimamente pessoas que acreditam no que vêem na televisão. Não falo de noticiários, onde alguma dose de realidade sempre há.

Mas de documentários, onde o cineasta, para melhor explicar uma teoria, produz imagens de fantasmas, corpos se incendiando, copos se movendo numa mesa. Pois não é que há centenas, senão milhares, de espectadores, que acreditam na existência real da imagem produzida? Há pouco, um destes interlocutores me jurava de mãos juntas que a combustão espontânea era algo real. Ele havia visto uma mulher entrando em combustão na TV. E mais: vira na TV a cabo. Descobri então que a TV a cabo, talvez por seu sotaque estrangeiro, goza de mais credibilidade que a TV aberta.

São pessoas incultas, dirá o leitor. Pode ser. Mas a universidade, onde por definição está a elite pensante das nações, durante décadas acreditou em Freud e Marx. Marxismo e freudismo, no Ocidente, só enganam pessoas cultas. As elites, para serem enganadas, exigem uma cobertura sofisticada para o embuste, uma espécie de chantili científico para o bolo. Para os pobres de espírito, serve deus mesmo. Ou astros. Ou borra de café.

Assim, quando vejo ilustres doutores empunhando a Bíblia, Marx ou Freud, sempre me ocorre a imagem do simplório garçom de Túnis. Em sua credulidade, era um legítimo representante desta incrível raça, a humana, sempre disposta a crer no que não entende.

* 13/7/2002