¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, outubro 22, 2013
 
UMA LEI ROUANET
PARA OS CAVALOS



Há mais de ano, comentei mais um desses modismos que os gigolôs das angústias humanas lançam mão para enganar incautos e ganhar dinheiro, a equoterapia. Descobri então que fiz terapia desde criança e não sabia. Nasci quase em lombo de cavalo, desde pequeno os encilhei e montei. Isso quando não montava em pêlo e sem freio, prática que me fascinava. A gente vai dando tapas no pescoço do cavalo para orientá-lo e puxa as crinas para freá-lo.

Claro que isso não se faz com cavalo caborteiro. Após a cavalgada, largávamos o animal no campo. Vai ver que é por isso que sou hoje um ser mentalmente tão saudável. Claro que há quem me tome por insano e julgue que necessito urgentemente de terapia. Que se vai fazer? Impossível agradar a todo mundo.

Nunca imaginei que andar a cavalo constituísse terapia. Para mim, era meio de transporte, trabalho e lazer. Transporte para ir à escola ou visitar meus tios, trabalho na hora de ligar com o gado, lazer quando simplesmente saía a cavalgar ou caçar. É óbvio que uma criança urbana se sentirá muito bem, longe da cidade, montando um cavalo. Daí a ser terapia, me parece embuste dos psis. A menos que se considere que fazer algo agradável é sempre terapêutico.

Para os equoterapeutas, andar a cavalo melhora até o desempenho na escola. Mais um pouco e os novos terapeutas ainda descobrem que nadar, andar de bicicleta ou praticar qualquer esporte prazeroso estimula uma criança a aprender.

Equoterapia está na moda. Para quem pode pagar, é claro. Há anos venho denunciando estas vigarices, que só servem para enganar a classe média urbana. Digo classe média urbana, pois jamais enganarão um camponês, cujo filho precisa de um cavalo para ir à escola. Cavalo, no caso, não é luxo, mas meio de transporte.

Há horas venho denunciando estes gigolôs das angústias humanas, que transformam em doença circunstâncias banais da existência, para delas tirarem seus rendimentos. Já há terapias para o luto, esse fato banal desde milênios na vida do ser humano, e que desde os primórdios de sua existência não precisou terapia. Também há terapia para quem muda de cidade, como se mudar de cidade – ou de país – não fosse um ato corriqueiro para milhões de pessoas.

No que depender dos psis, cada cidadão deve andar com um psicólogo a tiracolo. Até mesmo a medicina séria parece ter caído no engodo. Os médicos que tratam meus tumores, seguido me perguntam se não tenho apoio psicológico. Até mesmo minha faxineira – que eu julgava imune a essas armadilhas para gente culta – já me fez a pergunta. Ora, que vai me dizer um destes senhores sobre minhas doenças? Se alguém pode me dizer algo, este alguém é o médico. Do jeito em que vão as coisas, todo doente precisará de um psicólogo ou psicanalista junto a seu médico.

O que nos leva a um mistério. Como faziam os homens d’antanho - daqueles tempos em que a psicologia não se instalara ainda como ciência – para resolver esses tremendos dramas humanos, como a morte de um próximo, uma mudança de cidade, o rendimento escolar ou as crises afetivas? Mistério, profundo mistério.

Mudando os queijos de bolso: desde que comecei a assinar colunas – e já lá vão quarenta anos – tenho denunciado essa farsa lucrativa que grassa no Rio Grande do Sul, o cetegismo. Em nome da preservação das tradições – tradições que não passam de ficção – espertalhões da capital têm ganho dinheiro e poder, explorando um orgulho sem base alguma. Cultivam as danças gaúchas, danças que nunca existiram, mas foram criadas por um publicitário, o Barbosa Lessa, e copiadas de danças lusas e espanholas. Cultivam um herói que nunca foi herói, mas sim um pobre diabo extraviado no campo.

E tecem loas ao cavalo que, se um dia foi instrumento de trabalho do gaúcho, hoje é luxo de citadinos exibido em desfiles carnavalescos, as tais de cavalgadas. Cavalgadas rumo a quê, com que propósitos? Cavalgadas rumo ao nada, com o propósito de cultuar o que não foi. Cavalgadas existiram para conduzir gado, para viajar, para ir a festas, ao bolicho. O gaúcho nunca cavalgou para exibir pilchas. Que, a propósito, custam os olhos da cara. É preciso ter muita plata, hoje, para vestir-se como os cetegistas acham que o gaúcho se vestia.

Em meio a isso, leio que uma nova vigarice está sendo montada, para usar o cavalo não para cavalgar, mas para meter a mão no bolso do contribuinte. Está pronto para ser votado na assembléia legislativa do Rio Grande do Sul o projeto que torna a cavalgada patrimônio cultural do Estado. Ora, se locomoção é patrimônio cultural, alpargatas mereciam um monumento.

Diz o Projeto 312/2012, que tenta regulamentar a relação do gaúcho com o cavalo, assim como já foi ridiculamente regulamentada a indumentária do gaúcho. O assalto ao contribuinte, que parece ser algo hoje tão natural que nem precisa ser escondido, já está no primeiro parágrafo do projeto:

— Pela proposta, eventos equestres passam a ser práticas desportivas e culturais, podendo captar recursos públicos para suas realizações.

Temos agora uma lei Rouanet para cavalos. Os bravos cetegistas querem subsídios para suas fanfarronadas. E obrigam as prefeituras a limpar o lixo gerado pelos animais: “ Exige que prefeituras organizem o trânsito e garantam a limpeza das vias imediatamente após a passagem dos animais”.

E ainda gera uns empreguinhos colaterais: “ Impede também que eventos com mais de cem cavalos ou percurso superior a 40 quilômetros sejam realizados sem a presença de um veterinário”.

Velha tradição da Revolução Farroupilha, cujos combatentes sempre se precaviam de levar um veterinário em seus combates.

Pouca vergonha. O contribuinte está tão amortecido que já nem protesta quando vigaristas querem transformar em texto legal o assalto a seus bolsos. Sem dúvida a lei vai passar, afinal orgulho sempre rende votos.