¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, dezembro 12, 2013
 
O SÉCULO DE NETCHAIEV


Em 1946, Camus publicou em Combat uma série de artigos, sob o título genérico de "Ni victimes ni bourreaux", reflexões que antecipam O Homem Revoltado. Se o século XVII foi o século das matemáticas, argumenta Camus, se o XVIII foi o século das ciências físicas, se o XIX foi o da biologia, o homem contemporâneo vive o século do medo.

"Dir-me-ão que isto não é uma ciência. Mas, primeiramente, a ciência aí está para qualquer coisa, pois seus últimos progressos teóricos a levaram a negar-se a si mesma, dado que seus aperfeiçoamentos práticos ameaçam a terra inteira de destruição. Além disso, se o medo em si mesmo não pode ser considerado como uma ciência, não resta dúvida alguma que seja uma técnica".

Camus morreu em 1960, e quando escreveu estas linhas, o século nem havia chegado à sua metade. Muita água ainda haveria de correr pelas próximas décadas. Vivesse até nossos dias, talvez definisse o século XX como o século do terror. Pois desconheço século em que o terrorismo tenha sido tão prestigiado.

Em meados do século XIX, surgiu na Rússia tzarista um pequeno manifesto intitulado O Catecismo do Revolucionário, escrito na Suíça e assinado por dois revolucionários russos, Serguei Guennadovich Netchaiev e Mikhail Bakunin. Este panfleto tem sido até hoje a cartilha que inspirou todo terrorismo do século seguinte, desde Lênin, Stalin, Yasser Arafat, George Habash, Wadi Haddad, Carlos, o Chacal, Che Guevara, Aloysio Nunes Ferreira, Lamarca, Marighella e Fernando Gabeira, etarras ou OLP. Entre milhares de outros, bem entendido. (Se alguém não lembra mais quem foi Aloysio Nunes Ferreira, eu ainda lembro. Foi ministro da Justiça no governo Fernando Henrique). As estratégias do catecismo influenciaram todo o século passado e foram utilizadas pela Frente de Liberação Nacional na Argélia, pelo Vietcong no Vietnã, e pelos movimentos guerrilheiros latinoamericanos, entre outros.

Netchaiev tinha 22 anos na época da publicação do panfleto. Sem poder matar um tirano, acabou matando um estudante, Maxim Ivanov - suspeito injustamente de ser agente duplo da Ochrana, polícia política tzarista - o que lhe valeu o afastamento de Bakunin, que reprovou sua "repugnante tática". Netchaiev, condenado a 25 anos de prisão, continua conspirando mesmo entre as grades, planejando inclusive o assassinato do tzar. Morre nas masmorras da fortaleza Pedro e Paulo, em São Petersburgo, após doze anos de reclusão.

A diferença entre Netchaiev e os terroristas do século passado é que Netchaiev morreu na prisão, com a pecha de terrorista. Os assassinos de multidões do século passado passado foram cultuados como deuses. Quando Stalin morreu, muitos não acreditaram, pois um deus não pode morrer. Mao, o assassino maior, foi o Grande Timoneiro, o libertador da China. Pol Pot, genocida menor – apenas dois milhões de cadáveres – foi preso pelo Khmer Vermelho. Não por seus crimes, mas por ter se tornado seu inimigo político. Fidel Castro, genocida medíocre – consta que míseros cem mil mortos – até hoje é reverenciado como libertador de um país que não era pobre e hoje vive à míngua. Che Guevara, assassino de gatilho fácil e responsável pela atual miséria de Cuba, é tido ainda como libertador do continente.

Quanto aos nossos – Marighela, Lamarca, Aloysio e Gabeira – os que morreram são cultuados como mártires e os vivos aí estão, ocupando postos importantes no país.

Mas o coroamento do século só ocorreu na semana passada, com a morte de Mandela. Condenado à prisão por seus crimes, conseguiu passar a imagem de herói na luta contra o racismo na África do Sul. Veja não teve pudores em dar-lhe a capa – com o título “o guerreiro da paz” – mais seis páginas de hosanas, que o saúdam como o “último grande homem do século XX”. Em algo a revista tem razão, é quando fala de último. Pois não sobram mais terroristas do estoque do século passado a serem cultuados.

A imprensa toda – no Brasil e no mundo – esqueceu o terrorista e teceu loas ao homem que oficializou o racismo oficioso da África do Sul, confiscando propriedades de brancos e privilegiando negros na política e na economia.

Ainda há pouco, citei artigo de Daniela Pinheiro: “O desemprego atinge 40% da população, mais que o dobro do registrado há duas décadas. Nas áreas rurais, 60% dos negros não têm ocupação. O número de pessoas que sobrevive com menos de 1 dólar por dia também duplicou nos últimos vinte anos. Um terço da população continua sem saber ler ou escrever. O índice de repetência aflige 70% das crianças negras. Com a maior epidemia de Aids do planeta (5,8 milhões de contaminados) e índices de criminalidade assustadores, a expectativa de vida dos sul-africanos caiu de 63 para 49 anos na última década”.

Mesmo assim, Mandela continua sendo herói. Durante anos estrela da lista de terroristas dos Estados Unidos, seu nome dela foi retirado em 2008, não por acaso o ano da eleição de Obama. Pela primeira vez na história, um presidente dos Estados Unidos – acompanhado por uma centena de dignitários – comparece aos funerais de um terrorista.

Decididamente, o século passado foi o de Netchaiev.